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  • Banheiro é direito: quando vão respeitar a dignidade das pessoas trans?

    Banheiro é direito: quando vão respeitar a dignidade das pessoas trans?

    Na última semana, dois  episódios de violência envolvendo o direito ao acesso de pessoas trans ganhou destaque nas redes sociais e na imprensa. Em Recife, a personal trainer Kely Moraes foi impedida de usar o banheiro feminino na academia onde trabalha, após ser “confundida” com uma mulher trans. Kely, no entanto, é uma mulher cisgênera. Já na Carolina do Sul, Luca Strobel, um homem transmasculino foi agredido e preso ao usar o banheiro feminino como como obrigada a Lei, na Carolina do Sul.

    Os episódios escancaram fissuras profundas sobre como a sociedade constrói o que entende por “feminino” e “masculino” — e evidencia que determinados grupos seguem sobrevivendo sem o mínimo de dignidade. Corpos são policiados. Gêneros são questionados. E o que deveria ser um ato simples — usar o banheiro — se transforma, todos os dias, em mais um campo de batalha.

    Essa cena não é nova: o banheiro como instrumento de exclusão

    Se você já assistiu ao filme Estrelas Além do Tempo, talvez se lembre da cena em que uma das cientistas negras da NASA, mesmo promovida, era obrigada a andar quilômetros para acessar o único banheiro “permitido” para mulheres negras. A cena se passa nos anos 1960, no auge da segregação racial nos Estados Unidos. Pessoas negras não só eram impedidas de usar banheiros compartilhados, como também eram agredidas e presas por isso.

    Essa violência institucionalizada parece coisa do passado — mas continua acontecendo, sob novas formas, aqui e agora.

    “Tenho medo de ir ao banheiro”

    Sou uma mulher trans. E sim, já tive medo de acessar o banheiro. Na verdade, essa situação ainda me causa ansiedade e insegurança. Seja em shoppings, academias, zoológicos ou barzinhos, o pânico é o mesmo. Já fui repreendida em um terminal de ônibus e em um bar. Por isso, ao sair de casa, visto diversas camadas de proteção: na roupa, na postura, na fala. Porque as pessoas trans, todos os dias, são impedidas de existir com tranquilidade — até mesmo no ato mais simples: ir ao banheiro.

    Casos recentes mostram a gravidade do problema

    • Natal, 2022 – Vereadora Thabatta Pimenta impedida em shopping
      A vereadora trans Thabatta Pimenta foi barrada ao tentar usar o banheiro feminino no Shopping Via Direta. Gerentes e seguranças questionaram seus documentos. A situação foi registrada por testemunhas e gerou ampla repercussão. Em 2024, a Justiça condenou o shopping a pagar R$ 5 mil de indenização.
    • Niterói, 2024 – Travesti impedida, protesto e resistência
      A travesti Lua foi proibida de usar o banheiro feminino no Shopping Icaraí. O caso gerou protesto com “xixi simbólico” liderado pela vereadora Benny Briolly, denunciando a transfobia institucional. O episódio reacendeu o debate sobre os direitos das pessoas trans em espaços públicos.
    • Recife, 2025 – Kely Moraes confundida com mulher trans
      Kely, mulher cis, foi impedida de usar o banheiro por parecer “fora do padrão feminino”. O caso prova que a transfobia atinge até quem não é trans — e como a sociedade vigia corpos com base em estereótipos.

    E a Justiça, o que diz?

    Desde 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a transfobia deve ser equiparada ao crime de racismo. Isso significa que práticas discriminatórias contra pessoas trans, como impedir o acesso ao banheiro de acordo com sua identidade de gênero, podem ser consideradas crime.

    No entanto, casos como o de Florianópolis revelam uma realidade contraditória: mesmo com essa decisão, o Judiciário ainda falha em proteger a dignidade das pessoas trans.

    Um exemplo emblemático é o caso da mulher trans que foi impedida de usar o banheiro feminino em um shopping e acabou fazendo suas necessidades na roupa. Ela entrou com uma ação na Justiça pedindo indenização. Inicialmente, o tribunal condenou o shopping ao pagamento de R$ 15 mil. Mas o Tribunal de Justiça de Santa Catarina reverteu a decisão, alegando que o episódio não passou de um “mero dissabor”. A mulher recorreu ao STF — e o caso se arrastou até 2024.

    Quando finalmente chegou ao plenário do Supremo, a maioria dos ministros decidiu não julgar o mérito por uma questão processual: entenderam que o caso tratava de indenização e não de um tema constitucional. Na prática, o STF não discutiu o direito de pessoas trans de serem tratadas de acordo com sua identidade de gênero. O tribunal sinalizou que essa discussão poderá ocorrer no futuro — mas até lá, a dignidade das pessoas trans continua sendo negada todos os dias.

    A advogada e pesquisadora em Direitos Humanos Victória Dandara Amorim comenta que a via criminal, ainda que seja uma importante conquista, tem tido um efeito mais simbólico do que resolutivo. “O direito penal não foi feito para proteger pessoas, foi feito para encarcerar corpos indesejáveis. Principalmente da população negra, periférica, trans e travesti. A gente tem tentado subverter isso e usar como um efeito simbólico para que possamos ter respaldo ao chamar a polícia e abrir um boletim de ocorrência, por exemplo”.

    Mas, na prática, nós sabemos que a impunidade para pessoas cisgêneras costuma ser a regra em casos de transfobia. Victória ressalta que é necessário lutar em diversas frentes para que a proteção de pessoas trans se torne uma realidade concreta no Brasil. Pressionar o Estado por políticas públicas de proteção ao invés de punição, assim como levar casos como os mencionados para as cortes e para as nossas parlamentares, são estratégias importantes.

    O que diz o Ministério Público Federal?

    Em nota técnica publicada em 2023, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão alertou para a escalada de projetos legislativos que tentam restringir os direitos da população trans em banheiros e outros espaços públicos. Apenas no primeiro trimestre de 2023, mais de 60 projetos foram apresentados em câmaras municipais, assembleias legislativas e no Congresso Nacional.

    O MPF considera esses projetos inconstitucionais, por violarem o princípio da autodeterminação identitária — o direito que toda pessoa tem de ser reconhecida pelo gênero que afirma.

    Victória Dandara também chama atenção para os compromissos que o Estado brasileiro assume, tanto na Constituição — que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana — quanto em tratados internacionais, como os que estão sob a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

    As normas internacionais que regulam o Brasil e têm força constitucional garantem o direito à autodeterminação de gênero. Isso significa que, se eu me reconheço como uma pessoa trans, o Estado tem que me respeitar. Em teoria, a gente tá resguardado. Agora a questão é: como a gente pressiona os órgãos públicos para nos proteger?

    Fui impedida de usar o banheiro. O que fazer?

    Se você é uma pessoa trans e teve seu direito ao uso do banheiro negado, é possível tomar algumas medidas:

    • Registrar um boletim de ocorrência, especialmente em caso de agressão verbal ou física. Disque 100: Canal de denúncia de violações de direitos humanos. 
    • Buscar testemunhas ou registros da situação (fotos, vídeos, relatos).
    • Denunciar ao Ministério Público Federal ou Estadual.
    • Procurar apoio em núcleos jurídicos LGBTQIA+ ou defensorias públicas.

    Tornar o caso público, se sentir segurança para isso — a denúncia também é uma forma de resistência.

  • Vamos para uma Ball? Instituto Moreira Salles recebe o Circuito Ballroom: O amor é a mensagem

    Vamos para uma Ball? Instituto Moreira Salles recebe o Circuito Ballroom: O amor é a mensagem

    Abrindo os caminhos para o mês do orgulho LGBTQIAPN+, o Instituto Moreira Salles (IMS) promove, em São Paulo, entre os dias 31 de maio e 1º de junho, o Circuito Ballroom: O amor é a mensagem, com uma programação variada que inclui sessões de cinema, oficinas e uma grande Ball.

    Organizado pelas curadoras Angel Jayaci Hands Up e Statement Princess Dani Mutatis — ambas referências da cena ballroom no Brasil — o circuito celebra a potência de uma cultura criada por pessoas LGBTQIAPN+, negras e latinas nos Estados Unidos dos anos 1970, que até hoje funciona como espaço de resistência, celebração e afirmação de identidade. E que tem ganhado cada vez mais espaço no Brasil.

    “O amor é a mensagem.” Mais do que uma frase, é uma filosofia que movimenta corpos, histórias e afetos dentro de uma cultura que não é só festa — é movimento político e resposta à marginalização. “A comunidade ballroom é essa rede de afeto que ajuda a gente a lutar aqui fora. É um lugar onde encontro muitas corpas como a minha, muitas realidades parecidas com a minha. E é aí que começam os afetos, é aí que começa outra realidade”, explica Angel Jayaci Hands Up.

    Outra grande característica da cultura ballroom são as Casas, que funcionam como famílias alternativas, com figuras como “mãe” ou “pai”, oferecendo apoio emocional, moradia, acolhimento e formação artística. “Por ser filha de duas mães travestis da excelente Casa de Mutatis, sei que a ballroom é onde incentivam todos os nossos sonhos a se realizarem. É a construção de uma família para quem não teve esse afeto”, conta, Statement Princess Dani Mutatis.

    Imagem de divulgação do filme Salão de baile – This Is Ballroom.

    Programação celebra memória, estética e história

    O circuito é fruto do Potências Trans, coletivo formado por pessoas trans que trabalham no próprio IMS. A programação começa na sexta-feira, 30 de maio, às 19h, com a exibição dos filmes “The Queen” (1968) — documentário que registra os bastidores de um concurso de beleza queer dos anos 1960 — e “Queens at Heart”, curta que retrata a vida de quatro mulheres trans em Nova York na mesma década. Após a sessão, rola um bate-papo com o artista interdisciplinar Legendary Flip Couto e as curadoras.

    No sábado, 31 de maio, às 15h, duas oficinas tomam conta do espaço: a fotógrafa Star Cintia Rizoli ensina como registrar a estética das balls e, ao mesmo tempo, Trailblazer Mother Eduarda Kona Hands Up conduz uma aula de voguing, dança símbolo do movimento ballroom. As atividades são gratuitas, com distribuição de senhas uma hora antes.

    Às 18h, o cinema volta a ser protagonista com a exibição de dois filmes brasileiros: “Salão de Baile – This Is Ballroom”, de Juru e Vitã — primeiro documentário sobre a cena ballroom no Rio de Janeiro —, e “Feminino”, de Carolina Queiroz, que debate identidade de gênero e os limites entre o que é considerado masculino e feminino.

    O amor é a mensagem — e a ball também

    O grande encerramento acontece no domingo, 1º de junho, das 15h às 18h, no térreo do IMS Paulista, com a ball “O amor é a mensagem: eras ballroom”. No baile, artistas da cena competem em cinco categorias, avaliados por um júri especializado. Cada categoria tem premiação de R$ 1.000.

    A ball será apresentada pela chant Star Mother Aurora Abloh e pelo host Trailblazer Felix Pimenta, com som comandado pela DJ Maia Caos Avalanx. Para competir, é necessário ser da comunidade ballroom e fazer inscrição prévia — os detalhes serão divulgados nos canais do IMS.

    “A comunidade ballroom é um movimento político em formato de batalhas, onde celebramos nossa existência em oposição a tudo que nos é negado pela sociedade”, afirmam as curadoras. 

    O próprio nome do evento é uma homenagem direta ao clássico da música disco “Love Is the Message” (1973), do grupo MFSB — trilha que se tornou um verdadeiro hino das pistas ballroom no mundo todo. “Mais do que nostálgico, começar um baile com essa faixa é um ritual. Um lembrete de que, antes de qualquer competição, o amor é  e sempre será  a mensagem.”

    Serviço

    Circuito Ballroom: o amor é a mensagem

    De 30 de maio a 1 de junho

    entrada livre

    IMS Paulista

    Programação completa

    30 de maio (sexta)

    • 19h – Exibição dos filmes The Queen, em cópia restaurada em 4K, e Queens at Heart, seguida de conversa com Flip Couto e as curadoras | Cinema do IMS Paulista – Entrada gratuita, com distribuição de senhas 1 hora antes da exibição e limite de uma senha por pessoa.

    31 de maio (sábado)

    • 15h – Oficina Fotografia em movimento, com Star Cintia Rizoli

    Sala Multiuso | 9º andar

    Entrada gratuita, com distribuição de senhas 1 hora antes e limite de 1 senha por pessoa. 

    • 15h – Oficina Prática e introdução no voguing, com Trailblazer Mother Eduarda Kona Hands Up 

    Ateliê | 9º andar

    Entrada gratuita, com distribuição de senhas 1 hora antes e limite de 1 senha por pessoa. 

    • 18h – Exibição dos filmes Salão de baile − This Is Ballroom + Feminino | Cinema do IMS Paulista

    Entrada gratuita, com distribuição de senhas 1 hora  antes da exibição e limite de uma senha por pessoa.

    1 de junho (domingo)

    • 15h às 18h – Baile O amor é a mensagem: Eras ballroom | Térreo do IMS Paulista
    • Evento com inscrição prévia para as pessoas competidoras e aberto ao público como espectador (150 lugares em pé).As inscrições para a competição serão divulgadas futuramente nos canais do IMS.
  • O que não te contaram sobre o filme ‘Geni e o Zepelim’

    O que não te contaram sobre o filme ‘Geni e o Zepelim’

    Geni é travesti. Foi com essa narrativa que o filme “Geni e o Zepelim” foi aprovado e captou recursos públicos, como consta nos registros da Agência Nacional do Cinema (ANCINE). Mas, ao chegar na fase de realização, a produção decidiu substituir a personagem por uma mulher cisgênero, escalando também uma atriz cis para o papel principal. A decisão gerou indignação na comunidade trans e em aliados do audiovisual, que denunciaram o apagamento em curso.

    O longa é uma adaptação cinematográfica da famosa canção “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque, de 1978, que compôs o musical “Ópera do Malandro” e deu origem a diversas obras nos anos seguintes. A música chegou a virar peça e um filme em 1986, que deixa claro que o motivo da hostilidade contra Geni era por sua identidade de gênero.

    Joga pedra na Geni! Joga bosta na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um!
    Maldita Geni!

    Chico Buarque sabia disso, a mídia sabe disso e Anna Muylaert, diretora e roteirista do longa, também sabia disso. Ainda assim, em suas redes, após a comunidade trans e pessoas cis-aliadas de grande importância no cenário cinematográfico e cultural apontarem por transfobia, Muylaert se pronunciou afirmando que a canção de Chico abria margem para “várias leituras” sobre quem seria Geni. 

    Sinopse do filme ‘Geni e o Zepelim’ aprovado pela ANCINE

    “Entenda a polêmica do filme Geni e o Zepelim”, “A polêmica em torno de personagem trans do filme ‘Geni e o Zepelim’”, “Polêmica: o que motivou troca de atriz cis por trans?” foram as mensagens propagadas nas matérias que repercutiram o filme. Nessas e em tantas outras notícias, uma palavra chamou a nossa atenção: ‘polêmica’. Seria essa a melhor forma de chamarmos os últimos acontecimentos envolvendo a personagem Geni? 

    Da denúncia à mobilização

    E se ao invés de polêmica, falássemos em apagamento, apropriação ou epistemicídio, um apagamento da memória? Essa é uma das reivindicações da Associação de Profissionais Trans do Audiovisual (APTA), que teve papel fundamental no diálogo com a produção do filme em absorver as críticas da comunidade trans de modo a evitar o transfake que estava em curso — sem receber qualquer contrapartida financeira por isso. 

    Alice Muniz, atual presidenta da APTA, nos contou que já presenciou diversos corpos interpretando Geni. Mas, em nenhum deles, Geni estava sendo representada nos palcos por uma atriz travesti. Ela nos lembra do poder da representatividade: “O transfake mina toda uma força das travestis brasileiras e da população trans brasileira marginalizada de poder se reconhecer e se empoderar perante uma tela de cinema”.

    Foto:Arquivo pessoal de Alice Muniz

    Muniz comenta que mudanças ao longo da execução de projetos audiovisuais são comuns e que isso sempre foi feito no cinema, ainda que nem sempre de forma justa. Seja por uma justificativa criativa, artística ou social, como em aumentar a repercussão e impactar mais pessoas. Lembremos do caso de Telma Lipp, que foi convidada a participar do filme Carandiru para interpretar Lady Di, chegando a participar ao longo de meses dos ensaios, sendo trocada pelo ator Rodrigo Santoro, um homem cis interpretando uma travesti, por movitos de “marketing”.

    O mesmo aconteceria com o filme de Muylaert, em que Geni deixaria de ser interpretada por uma travesti para ser uma personagem cisgênero. A diferença é que, dessa vez, a justificativa não foi suficiente. “Fazer isso hoje em dia com as pessoas trans organizadas dentro do audiovisual, a gente vai se mobilizar para pedir uma reivindicação justa. A gente vai falar, porque se em silêncio a gente apanha, pelo menos a gente vai apanhar falando”, comenta Alice.

    Foi por conta dessa mobilização da comunidade que o rumo do filme voltou a sua história original. Geni será interpretada por uma travesti: a atriz Ayla Gabriela estreia como protagonista em seu primeiro longa. 

    O uso indevido da pauta trans

    A mobilização expôs outra camada do problema: o uso da pauta trans como estratégia para captação de recursos públicos, sem compromisso real com a representatividade.

    Giu Vatiero, especialista em Direitos Autorais e Culturais, nos explicou que no Brasil projetos audiovisuais que recebem apoio público, como os fomentados pela ANCINE, são regidos por um instrumento jurídico chamado Termo de Execução Cultural. Esse termo é mais do que um simples contrato administrativo: ele vincula o proponente à execução fiel da proposta aprovada, a qual, por sua vez, é avaliada com base em critérios técnicos, conceituais e cada vez mais sociais.

    “A presença de uma travesti em destaque em um longa-metragem tem um peso político, simbólico e social inegável. Essa presença foi utilizada como critério de mérito para a aprovação do projeto e a posterior substituição dessa pessoa por uma atriz cisgênera, sem autorização prévia da agência, pode configurar descumprimento do Termo de Execução Cultural. Essa alteração atinge não só a concepção artística, mas o próprio compromisso que justificou o uso de recursos públicos”, afirma Vatiero. 

    Isso significa que, ainda que mudanças ao longo do percurso do projeto sejam comuns, uma mudança como essa na identidade de gênero da personagem protagonista do filme abre um precedente alarmante no uso de recursos públicos aprovados com o uso da pauta trans.

    Escuta, ação e reparação

    Para reparar os danos e garantir maior representatividade trans no cinema, a APTA divulgou uma carta com reivindicações direcionadas à produção de Geni e o Zepelim. As demandas incluem a escolha de uma nova protagonista trans, revisão do roteiro por pelo menos três profissionais trans, contratação de no mínimo 10% de equipe técnica trans e reconhecimento público da falha, com compromissos claros em relação à saúde mental, segurança e bem-estar das pessoas trans envolvidas no projeto.

    Ao assegurar que Geni será interpretada por uma atriz travesti, o filme dá um passo importante. “Essas ações podem marcar o início de um processo de reparação histórica que o audiovisual brasileiro precisa e deve assumir. Não se faz cinema justo sobre travestis sem travestis. É tempo de escuta, ação e reparação”, diz a carta.

  • Nem segurança, nem dignidade: o dilema das pessoas trans migrantes

    Nem segurança, nem dignidade: o dilema das pessoas trans migrantes


    Em abril de 2025, a deputada federal Erika Hilton desistiu de viajar aos Estados Unidos para participar da Brazil Conference, organizada por Harvard e o MIT. Apesar de ter seus documentos retificados e sua identidade legalmente reconhecida pelo Estado brasileiro, as autoridades migratórias americanas a classificaram como “sexo masculino”, gerando uma situação de vulnerabilidade.

    “Fiquei preocupada com o tratamento que receberia no aeroporto, das autoridades americanas, tendo em vista que o nome é feminino e o gênero descrito era masculino. Senti medo, para ser sincera. E não aceitei me submeter a esse tipo de coisa. Achei que não merecia, mesmo perdendo uma atividade importante à qual eu gostaria muito de participar, não deveria me submeter a tamanha violência e desrespeito como esse.” relata a Deputada Erika Hilton a Folha de São Paulo.

    Essa notícia me atravessou. Se uma figura com poder político, apoio diplomático e documentos legalmente reconhecidos sentiu medo e desistiu de uma oportunidade importante, o que resta para nós? Para quem, além de ser uma pessoa trans, é migrante, pobre, sem documentos ou com documentos que nos contradizem?

    Vivo em São Paulo há quase um ano. Nesse tempo, comecei a perceber os vazios entre as políticas de gênero e as políticas migratórias. Vi o quanto somos invisíveis — pessoas LGBTQIAP+ migrantes — nos debates públicos, e o quanto estamos ausentes na garantia efetiva de direitos.

    Em 2024, fui convidado para participar da Feira do Livro da Fronteira, em Tijuana, no México. Foi uma viagem importante, mas também extremamente angustiante: precisei raspar a barba, usar documentos com meu nome feminino e solicitar infinitas cartas de convite personalizadas, com medo de ser deportado — algo que já aconteceu comigo uma vez. A carga mental de planejar uma viagem, para quem vive nessa interseção de violências, não pode ser subestimada.

    Além disso, no final do mesmo ano, eu teria que viajar para o Mundial de Poesia Oral, em Togo. Não pude comparecer. Togo é um país que criminaliza a homossexualidade com penas de até dois anos de prisão. Podemos imaginar, então, qual é o lugar das pessoas trans em suas políticas de gênero. Cada passo das nossas vidas está submetido a sistemas que não nos reconhecem, nos penalizam ou nos matam.

    Foto Paulx: @maricaldini.fotografia

    Porque a fronteira não começa no aeroporto: ela está presente no sistema de saúde, quando o nome social não é respeitado; no transporte, quando o gênero atribuído no documento gera suspeitas; no banco, quando a foto no documento não “combina” com a expressão de gênero. A vida cotidiana de pessoas trans migrantes vira um campo de validação constante, onde o direito de existir depende da boa vontade dos outros.

    Em março deste ano, depois de reunir várias pessoas trans migrantes de todo o continente, conseguimos incluir a pauta migrante na Marcha Transmasculina de São Paulo, por meio da nossa participação com o IBRAT, que entendeu a urgência de criar espaços políticos para os debates migrantes. Foi um momento significativo, uma tentativa de tornar nossas vozes visíveis dentro de um movimento que, muitas vezes, também é construído a partir de narrativas nacionais. Pela Rede Milbi, organização migrante que integra a população LGBTQIAP+ em São Paulo, estamos desenvolvendo um projeto para facilitar o acesso a informações seguras, afetivas e multilíngues para pessoas LGBTQIAP+ migrantes.

    Porque acreditamos que a proteção começa com o acesso à palavra — saber quais são nossos direitos e como reivindicá-los. Desde que cheguei, percebo esse vazio e sigo lutando. Mas não posso sozinho. Não podemos sozinhes.

    Diante dessas violências estruturais, me interessa pensar como o gênero, a nacionalidade e a identidade funcionam como formas de performatividade socialmente exigidas — e, ao mesmo tempo, como mecanismos de deslocamento e apagamento. Judith Butler nos ensinou que o gênero não é algo que “somos”, mas algo que “fazemos”: um ritual reiterado de citação cultural. Da mesma forma, a nacionalidade também pode ser entendida como uma performance sustentada por atos (mostrar um passaporte, usar uma língua, declarar uma residência) que validam ou negam nossa pertença. E a identidade, atravessada por essas camadas, muitas vezes só é reconhecida ao custo da negação de si.

    O que acontece quando essas três performances — a de gênero, a de nacionalidade e a de identidade — colapsam ou entram em conflito? Proponho pensar esses colapsos como formas de deslocamento ritual: não cruzamos apenas fronteiras físicas, mas também simbólicas, institucionais e legais. Habitamos o limiar como modo de existência. E, nesse habitar, somos constantemente borrades, invalidades ou obrigades a performar papéis que nos violentam para poder seguir vives.

    Nossa existência obriga a repensar a relação entre natureza e cultura, entre corpo e documento, entre território e subjetividade. Nessa interseção, reivindicamos não apenas reconhecimento simbólico, mas direitos concretos: o direito ao voto, à retificação dos nossos nomes em documentos oficiais, ao reconhecimento pleno da nossa identidade.

    O Brasil precisa garantir que suas políticas contemplem todas as pessoas que vivem em seu território, independentemente do local de nascimento. O uso do “nome social” é um paliativo que muitas vezes falha, não é respeitado ou simplesmente não existe nos sistemas digitais. Pessoas trans migrantes não podem continuar sendo obrigadas a escolher entre segurança e dignidade.

    A experiência de Erika Hilton, embora dolorosa, nos ofereceu um espelho. Refletiu o que muitos de nós vivemos diariamente, mas sem poder midiático nem apoio institucional, e mostra como nunca estamos realmente a salvo — ocupemos o lugar que for, sejamos quem formos. Hoje, mais do que nunca, precisamos construir redes de proteção e espaços políticos onde nossas vozes não apenas sejam ouvidas, mas consideradas na transformação das leis.

    Tudo isso acontece ao mesmo tempo em que o Reino Unido emite uma decisão inédita: a definição de “mulher” na lei deve se basear no sexo biológico — um retrocesso que ameaça ainda mais nossas existências e demonstra como os discursos de ódio da ultradireita ganham legitimidade institucional globalmente.

    Este trabalho busca abrir essa conversa.

  • Projeto criado por homem trans oferece capacitação gratuita e mentoria para empregabilidade de pessoas trans

    Projeto criado por homem trans oferece capacitação gratuita e mentoria para empregabilidade de pessoas trans

     “Eu me olhava e me sentia completamente sozinho.” É assim que Noah Scheffel, gestor e idealizador do projeto Educa Transforma, descreve o início de sua transição de gênero social. O processo, marcado por desafios pessoais e profissionais, teve no ambiente de trabalho um ponto de tensão. “Achava que era um espaço de acolhimento e segurança, mas acabei passando por episódios de muita transfobia, ansiedade e depressão”, conta.

    A experiência de Noah não é isolada. Em 2024, o número de afastamentos do trabalho por questões de saúde mental cresceu 68%, com ansiedade e depressão liderando os diagnósticos. Noah chegou a ser internado em um hospital psiquiátrico. Foi nesse contexto solitário e adoecedor que ele decidiu transformar sua vivência em ação.

    Foto: Noah Scheffel

    Nasceu assim o Educa Transforma, projeto criado por Noah para capacitar gratuitamente pessoas trans e conectá-las com oportunidades reais de empregabilidade. “Queremos mudar a realidade expressa em dados como o de que 90% das mulheres trans e travestis recorrem à prostituição”, afirma.

    O projeto atua na raiz do problema: a educação. Segundo o defensor público João Paulo Carvalho Dias, que presidiu a Comissão de Diversidade Sexual da OAB em 2016, cerca de 82% da população trans abandona a escola ainda na infância ou adolescência. Essa evasão compromete o acesso ao mercado de trabalho formal, uma vez que sem formação mínima, currículos de pessoas trans são automaticamente descartados, isso sem contar o preconceito envolta da comunidade da sigla LGBT que mais morre no Brasil. 

    Desde 2019, o Educa Transforma já capacitou mais de 600 pessoas e doou cerca de 80 computadores. Com trilhas de aprendizagem em parceria com empresas e organizações, o projeto oferece formações em habilidades de comunicação, liderança, trabalho em equipe, programação, softwares e idiomas — todas voltadas exclusivamente para pessoas trans e 100% gratuitas.

    “O Educa Transforma tenta suprir a ausência de políticas públicas, ajudando na criação de redes de apoio que impactam diretamente na empregabilidade da população trans”, destaca Noah.

    Mentoria e curso em ciência de dados com inscrições abertas até 11 de maio

    Neste mês de maio, o projeto lança uma nova iniciativa de mentoria para aumentar as chances de pessoas trans ingressarem no mercado de trabalho. A formação, com foco em currículo estratégico, LinkedIn e comunicação para processos seletivos, acontecerá de forma online e ao vivo nos dias 26, 28 e 30 de maio, das 19h às 21h.

    Além disso, estão abertas as inscrições para o curso introdutório em ciência de dados para iniciantes que busca ensinar conceitos fundamentais da área de dados, Python e Marching learning, nos dias 27/05, 29/05, 03/6, 05/06, 10/06, 12/06 e 17/06.  Ambos os programas estão com inscrições abertas até o dia 11 de maio (domingo).

  • Escrevo ainda entre lágrimas, sabendo que vou levar dias pra sair desse estupor. A Unicamp já transicionou!

    Escrevo ainda entre lágrimas, sabendo que vou levar dias pra sair desse estupor. A Unicamp já transicionou!

    Eu estou na Unicamp desde 2014, então vivi a greve de 2016, quando as cotas raciais e o vestibular indígena foram aprovados e pude acompanhar as claras mudanças trazidas à universidade com a entrada de mais pessoas diversas, com suas vivências e culturas. A mudança é visível, mas também é palpável na cultura que se consome, nas festas, nas pesquisas, nas aulas, nas demandas.

    É com muito alívio e felicidade que agora eu consigo imaginar como a universidade vai estar daqui 5 ou 10 anos, com a presença garantida de várias turmas de cotistas trans na universidade. 

    Não tenho certeza se já sabemos de verdade o tamanho da nossa vitória, do impacto da implementação de cotas trans na primeira universidade estadual paulista em meio a esse ressurgimento do fascismo. Mas tenho certeza que fizemos história e mostramos que a universidade pública não vai tolerar nenhum tipo de ataque.

    Inclusive, a aprovação das cotas trans é a melhor resposta possível aos recentes ataques da direita campineira. Que apareceu no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH), durante a palestra de Erika Hilton e mais duas vezes depois, na tentativa de intimidar estudantes e desmobilizar a movimentação.

    Como professor de educação básica, me emociona demais poder imaginar que alunes trans têm uma nova perspectiva de futuro para além do abandono escolar e da violência e transfobia da rua.

    Como aconteceu a mobilização para aprovação das cotas trans ?

    A aprovação das cotas trans na Unicamp é fruto de muita luta. A greve estudantil de 2023 trouxe a pauta pro centro do debate. Entre comitês e assembleias, o Núcleo da Consciência Trans da Unicamp (NCT) foi uma das principais forças durante a greve e manteve as cotas no centro da discussão, apoiamos as outras requisições e conseguimos, por fim, um Grupo de Trabalho (GT) institucional pelas cotas trans.

     O GT trabalhou todo o ano de 2024 para montar uma proposta concreta e factível, a ser implementada ainda em 2026. Após duas audiências públicas e com a proposta final já em mãos, o GT consegue a data da votação para 01/04/25.

    Enquanto isso, sabendo que a luta não estava ganha, nos mobilizamos em várias frentes, incluindo garantir que a pauta fosse pública para fora da comunidade universitária. A estratégia era fazer um mega evento científico-cultural protagonizado inteiramente por pessoas trans, tão grande, que a Unicamp não poderia ignorar. Foram meses de planejamentos e desplanejamentos, reuniões e surto

    As semanas que antecederam a votação foram cheias de reuniões, assembleias e falas. Não acho que consiga relatar essas últimas semanas fazendo jus ao trabalho brilhante feito pelo NCT, da divisão de tarefas, da comunicação até as estratégias políticas, a atuação de todes coordenadories foi bafônica.

    A nossa força fica muito clara quando sabemos que apesar de a comunidade acadêmica ser muito conservadora, a votação foi unânime!

    Essa não é uma luta única !

    No meio desse processo a violência sistêmica nos atravessou e levou Agnes Lemos. Agnes era cientista social pela Unicamp, educador popular, atleta do Pogonas, membro do NCT e da comunidade Ballroom de Campinas. Ele estava em todo lugar, e a comunidade trans de Campinas sentiu em peso a sua partida.

    Essa caminhada deixa muito explícito como a nossa luta não começou ontem, e muita gente já está lutando bem antes de nós. Durante a mesa de lançamento do livro “Transgeneridade e Esportes – para além do cissexismo”, Leonardo Peçanha e Leila Dumaresq, ao fazer uma homenagem a Agnes, nos relembraram que até alguns anos atrás, tínhamos que enterrar as pessoas com nomes e roupas que não eram suas. As conquistas avançam a passos lentos e somos nós que derrubamos as portas e seguiremos derrubando.

    Vimos como a coletividade é forte. As lutas coletivas também são uma forma de resistência, o suporte, as identificações, os compartilhamentos fizeram dessa conquista mais forte e robusta, e vimos afinal o resultado, pois sabemos que a votação foi unânime por pressão do movimento.

    Essa conquista é fruto do sonho de muita gente antes de mim, de gente que teve sonhos megalomaníacos, muito para lá do que poderia ser real, e na  semana passada testemunhou o sonho virando realidade.

    Pra mim, pessoalmente, foi muito cansativo, minha dissertação entrou em estado de espera (e o prazo já era curto), meu cesto de roupa suja encheu bem além do que devia. Mas testemunhar de dentro esse momento histórico que vai mudar as perspectivas de tantas pessoas, valeu cada segundo. 

    Sabendo que a luta é coletiva, precisamos agradecer ao Ateliê TransMoras que germinou e fez crescer o NCT e tantas realidades ao longo dos últimos 12 anos. A cada pessoa que apoiou e entregou um pouco do seu tempo para as cotas trans na Unicamp. E principalmente a cada pessoa da coordenação atual do NCT que fez tudo isso em busca de uma mudança efetiva pelas próximas gerações. Eu quero que vocês vejam e sejam vistes em vida como as pessoas gigantes que são!

    Por Agnes Lemos

    Só de raiva, a gente vai viver.

  • O Tempo do Corpo

    O Tempo do Corpo

    Minha história começa em Santo André, no ABC Paulista, quando eu fazia parte de um coletivo anarquista. Foi ali que conheci uma pessoa trans e iniciei o que chamamos de processo de transição. Uma loucura. Tudo ao mesmo tempo: a revolução, as descobertas, o corpo em transformação.

    Lembro de uma noite em particular, quando eu e algumas amigas fomos levar uma companheira do coletivo até o ponto de ônibus. Ela morava em Campinas e enfrentava um trajeto longo até em casa. O ponto ficava ao lado de um albergue, um daqueles pontos de acolhimento para pessoas em situação de rua.

    Sentada ali, esperando, havia uma senhora. Talvez aguardasse o próximo ônibus para tentar um outro albergue, já que esse poderia estar lotado. Enquanto conversávamos, percebi que ela me olhava. Mas não era um olhar de julgamento. Era um olhar cheio de perguntas. Para pessoas trans, ser olhada assim é parte do cotidiano. Olhares de dúvida, curiosidade, às vezes ódio, às vezes afeto. Andar na rua pode ser desconfortável porque sempre tem alguém tentando decifrar quem você é.

    Eu segui conversando até que, de repente, a senhora se levantou, se aproximou de mim e perguntou:

    — Fia, quantos anos você tem?

    — Dezoito. Acabei de fazer.

    Ela olhou nos meus olhos e soltou:

    — Coitada ela não tem peito.

    Eu e minhas amigas começamos a rir na hora. Foi inesperado, era engraçado demais.

    Mas a senhora não parou:

    — Mas não se preocupa, minha filha. Peito cresce. Até uns vinte anos, cresce. Olha o meu, era pequeno e cresceu.

    A gente riu mais ainda. Não era maldade, não era um erro. Era só um outro modo de ver o mundo. Uma percepção que fugia da passabilidade, do que significa ser lida como mulher ou como homem. Um jeito de olhar que não se prendia aos rótulos.

    Anos depois, já com 23 ou 24 anos, eu estava em outro momento da vida. Mais madura, mas ainda vivendo pequenas surpresas da transição.

    Um dia, contratei uma trancista para fazer minhas tranças. Eu sou uma mulher negra e amo o visual, embora hoje tenha menos paciência para o tempo que leva. Ainda assim, quando faço, é um close.

    A trancista passou o dia comigo. Conversamos sobre tudo. Ela almoçou aqui, falamos de comida, dos filhos dela, do companheiro dela. Meu companheiro também ia trançar o cabelo depois de mim, quando voltasse do trabalho. A conversa fluía leve, divertida, cheia de vida.

    Em um momento, do nada, ela me perguntou:

    — Você não tem vontade de engravidar?

    Foi um daqueles segundos em que o tempo para. Um silêncio estranho se instalou. Ela percebeu na mesma hora o que tinha perguntado e o que isso significava para alguém como eu.

    No meu caso, que sou uma mulher trans, engravidar não é uma possibilidade. Eu não tenho útero.

    Ela ficou sem graça, pediu desculpas, mas eu ri. Rimos juntas. Não era sobre erro, era sobre como, às vezes, nos conectamos de um jeito que ultrapassa os limites do gênero. Sobre como essas conexões fazem com que perguntas óbvias se tornem quase ingênuas.

    E eu penso na menina que eu fui. Aquela que queria ser a Mística do X-Men porque sonhava em poder se transformar em qualquer pessoa.

    Mas a verdade é que eu sempre fui eu. Sempre estive aqui. Nem sempre como Sanara, mas sempre como eu.

    E não foi preciso ter superpoderes para me tornar quem eu sou. Só foi preciso aceitar que o mundo é múltiplo. Que os corpos mudam. Que algumas pessoas olham para mim com dúvida, outras com afeto.

    E que peito cresce. Ou não. Mas tudo bem.

  • Virada TransCultural em Campinas pressiona por cotas trans na Unicamp 

    Virada TransCultural em Campinas pressiona por cotas trans na Unicamp 

    Entre os dias 24 e 26 de março de 2025, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) será palco da Virada TransCultural, um evento gratuito que reunirá uma ampla programação cultural, incluindo rodas de conversa, apresentações artísticas e exibição de filmes. Organizada pelo Núcleo de Consciência Trans (NCT) da Unicamp, a iniciativa tem um duplo objetivo: ampliar a visibilidade da população trans e pressionar a universidade pela aprovação de cotas trans.

    Entre os destaques da programação está a participação da deputada federal Erika Hilton, que ministrará uma palestra sobre a vivência trans e a luta por direitos no Brasil. A programação também conta com batalhas de rima, performances, exposições e uma Ballroom.

    Para Alu Vieira, Mestrando em divulgação científica e coordenador da Virada TransCultural, a iniciativa é um importante espaço de mobilização para apoiar a comunidade que ainda vivencia uma universidade conservadora e excludente em relação às pessoas trans.

    “A Virada é um espaço de visibilidade para pressionar e levar a comunidade para a votação das cotas trans, que acontecerá no dia 1º de abril”.

    Alu Vieira

    A Virada também presta homenagem a ativistas que se dedicaram à luta por uma universidade mais plural e equitativa é outra vertente do evento. Entre eles, Agnes Lemos, educador popular, pioneiro na luta trans na Unicamp e um dos fundadores do NCT. 

    “Seu falecimento trágico, devido a violências sistemáticas direcionadas a grupos sub-representados, reforça nossa determinação em alcançar as cotas. Nosso esforço vai além do acesso às universidades públicas, buscamos garantir igualdade de oportunidades e de condições de vida digna para todas as pessoas trans”, comenta Luara Souza, cofundadora do NCT e da Virada, coordenadora de relações públicas e instituições da Associação Ateliê TRANSmoras.

    Confira a programação

    24 de março (segunda-feira)

    • Abertura com a performance Blocos + Roda de Capoeira (Maracatucá, Cupinzeiro e Capoeira para Todes) (9h às 10h30)
    • Abertura Quando conseguimos asas para voar (Vicenta Perrotta, Suzi Santos e Carolina Iara) (10h30 às 12h)
    • Capoeira para todes (12h às 12h50)
    • Palestra de Erika Hilton (13h às 14h30)
    • Mesa “Entre teses e Palcos: Transmasculinades na Cultura e no Saber) (14h30 às 16h)
    • Performance Amor não doi (17h30 às 18h)
    • Exibição do filme Eanna – Santuário Travesti (Laboratório de Imagem e Som – LIS) (19h às 20h30)
    • Discotecagem (20h30 às 22h)

    25 de março (terça-feira)

    • Mesa-redonda Conhecimentos em Trânsito: Por uma academia em transição (9h às 10h30)
    • Lançamento de livro (10h30 às 11h30)
    • Mostra científica cultura (13h às 18h)
    • Exibição do filme Eanna – Santuário Travesti 
    • Show Disforia Queer Core (18h às 19h)
    • Show Alice Guel (19h às 19h30)
    • Show MonaG (19h30 às 20h)
    • Discotecagem (20h às 22h)

    26 de março (quart-feira)

    • Exibição Filme Masculinidades Plásticas (10 às 11h)
    • Roda de conversa sobre a cultura do Vogue + Oficina  (Majestade Babilônia) (14h às 15h30)
    • Discotecagem (15h30 às 16h30)
    • Show de Oderiê (17h às 18h)
    • Ball das Casas (celebração da cultura e resistência trans e queer) (18h30 às 22h)

    Serviço

    Evento: Virada TransCultural da Unicamp
    Data: 24 a 26 de março de 2025
    Local: Unicamp – Barão Geraldo, Campinas (SP)
    Endereço: R. Elis Regina, Cidade Universitária, Campinas – SP, 13083-859
    Entrada: Gratuita

  • Orí não mente: nós pessoas trans sempre fomos de Orixá

    Orí não mente: nós pessoas trans sempre fomos de Orixá

    Há quem diga que o povo trans não deve ser de Axé. Mas nós sempre fomos de Orixá. Somos Iyalorixá, Babalorixá, Iaô, Ekedji, Ogã, Abiã, filhas, filhos e filhes de Santo. Saudamos Exu nas encruzilhadas, batemos cabeça no chão do terreiro, pedimos a bênção. Aprendemos com os mais velhos, cantamos, dançamos e cultuamos nossa ancestralidade. 

    No Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, celebrado em 21 de março, a Transmídia destaca a importância dos terreiros para a população trans e travesti no Brasil. Nós, que vivemos a exclusão social e muitas vezes familiar, encontramos (e nos reencontramos) nos Ilês uma nova possibilidade de vida, amor e união.

    Yalorixá Lavinnya Melo (Arquivo pessoal)

    Com cinco anos de casa aberta, Lavinnya acolhe muitas pessoas trans e LGBTQIA+ que chegam ao terreiro sem aceitar quem são. Ela, como mãe, faz o seu papel: acolhe, apoia e ensina que Orixá não vê genitália de ninguém. Orixá quer nossa cabeça e nosso coração para que a gente faça boas ações e caminhe com paz, prosperidade, caminhos abertos e estradas largas.

    A Yalorixá também reforça que a transgeneridade, assim como a homossexualidade, sempre existiu — e está presente nas histórias dos Orixás, que viveram na Terra. Ela lembra que Pomba-giras e Exus já se apresentavam dessa forma desde o tempo da escravidão, mantendo viva a ancestralidade desses corpos.

    Se o povo preto é ancestral, o povo trans também é!

    Ayô Tupinambá

    Esse pensamento também é compartilhado por Ayô Tupinambá, cantora e filha do Terreiro de Umbanda Urubatão (T.E.U) da Guia, na Zona Sul de São Paulo. No seu terreiro, cerca de 90% das pessoas são LGBTQIA+.

    Ayô nasceu e cresceu nos cultos evangélicos, mas saiu da igreja devido às violências que sofreu ao iniciar sua transição. Na época, ainda atuava como missionária em Natal, Fortaleza. Ela conta que foi no terreiro em que é filha que encontrou acolhimento, potência e um espaço onde poderia viver sua religiosidade e ancestralidade como um corpo travesti.

    Ayô Tupinambá (Crédito: Gabz 404)

    “Quando Iansã baixa no meu corpo, ela respeita a minha identidade de gênero. Se não respeitasse, ela nem baixava, né? Saber que Orixá baixa no meu corpo travesti mostra como o terreiro é um espaço de fortalecimento da minha própria existência”, conta Ayô, filha de Oyá.

    Ela também lembra que a tradição não pode ser usada como justificativa para exclusão e cita o caso recente do Afoxé Filhos de Gandhy, que impediu a participação de homens trans e pessoas transmasculinas no cortejo de Carnaval.

    “A tradição está aí para ser mudada, né? Antes, só mulheres cisgêneras incorporavam. Depois, os homens começaram a incorporar, mas apenas os Orixás considerados masculinos. Com o tempo, eles também começaram a ser feitos em Orixás femininos. Minha mãe de santo, Gui Watanabe, sempre me ensinou uma coisa que aprendeu com a sua Maria Mulambo: “A felicidade é inegociável.”

    Iyálòrísá Verah D’Osun (Arquivo pessoal)

    Em 2017, Verah D’Osun, que é uma mulher cisgênera, consagrou a primeira pessoa trans em seu Ilê. Passados mais de dez anos, ela não apenas segue acolhendo mais filhos, filhas e filhes trans, como também os tem em importantes funções, como é o caso de sua Ekedji, uma mulher trans, escolhida por Orixá, para cuidar e zelar do sagrado. 

    Para a Iyá, Olodumarê, o grande criador  e divindade suprema do Yorubá, ama seus filhos como iguais, cada um com sua individualidade. Ela também explica que muito se fala sobre Orí, de não ofender o Orí, que o Orí é um Orixá próprio, um Exú e um mundo próprio da pessoa, mas muitos ainda querem colocar os seus preconceitos e receios acima disso.

    “Quem sou eu para falar que um homem trans tem que usar roupa feminina, se o Orixá dele aceita como ele é? Podemos ser filhos e filhas de reis e rainhas, mas não somos Orixás. O conselho que eu dou para os sacerdotes e sacerdotisas é: olhe com amor, porque o amor quebra muitas barreiras. Essa é a missão dos povos tradicionais de terreiro, quebrar o preconceito e o medo”. 

    O projeto, que nasceu a partir da pesquisa de mestrado ÌGBÀMÍRÀN ÀIYÉ: O Ethos Afro- Brasileiro e a Transgeneridade na Religião dos Orixás, de autoria do Babalorixá Alan de Ogun (Ogundeje), reflete o compromisso dessas tradições religiosas com a justiça social e a valorização da diversidade.

    Glossário

    Ekedji: Pessoa responsável por cuidar e zelar dos Orixás e do terreiro, sem incorporar.

    Orixá: Divindades cultuadas nas religiões de matriz africana, ligadas à natureza e aos elementos da vida.

    Orí: A energia espiritual e destino individual de cada pessoa, considerado um Orixá próprio.

    Iorubá: Povo e língua de origem africana, de onde vêm muitas tradições do Candomblé.

    Ilê: Casa de culto aos Orixás, também chamada de terreiro.

    Axé: Força espiritual que rege tudo no universo, transmitida por meio de rituais e vivências.

    Maria Mulambo: É uma Pomba-Gira, importante entidade espiritual feminina afro-brasileira

  • NON-BINARY CODE: Evento discute tecnologia, sustentabilidade e diversidade de gênero 

    NON-BINARY CODE: Evento discute tecnologia, sustentabilidade e diversidade de gênero 

    São Paulo recebe, no dia 15 de março, a primeira edição do NON-BINARY CODE, evento gratuito que promove debates, oficinas e experimentações entre tecnologia, sustentabilidade e diversidade de gênero. A programação inclui painéis com especialistas, desenvolvedores, engenheiros e ativistas, além de atividades interativas que exploram inteligência artificial, cultura maker e códigos abertos.

    O evento é gratuito e aberto a todas as pessoas interessadas em tecnologia, sustentabilidade e diversidade de gênero, independentemente do nível de conhecimento na área, com impacto esperado em novas lideranças de 16 a 55 anos. A inscrição pode ser realizada pelo site oficial que direciona para a plataforma da Sympla. 

    Um dos destaques do evento será a interação com Códigos Abertos, promovendo transparência e autonomia, de forma plural, na criação tecnológica. Uma das oficinas, focada em Inteligência Artificial, ensinará sobre prompts e formas conscientes de navegar por programas de IA e inovação colaborativa por meio da Cultura Maker. Os visitantes também terão a oportunidade de escrever e visualizar algoritmos em tempo real, explorando a relação entre arte, dados e sociedade. Essa atividade será conduzida por uma monitora que auxiliará o público na criação de comandos abertos e na construção de imagens e textos.

    O NON-BINARY CODE é realizado pela Spiral Ascent Future e conta com apoio de secretarias municipais de São Paulo, além de coletivos LGBTQIAP+, indígenas e periféricos voltados à educação e inovação tecnológica. O evento busca ampliar o debate sobre inclusão digital e diversidade no setor tecnológico.

    Serviço

    📍 Local: Centro Cultural Olido – Av. São João, 473, Centro Histórico de SP
    📅 Data: 15 de março de 2025, das 13h às 20h30
    🎟 Inscrições: Site oficial / Sympla
    📌 Pitch de projetos: Inscrição aqui