O Tempo do Corpo

Minha história começa em Santo André, no ABC Paulista, quando eu fazia parte de um coletivo anarquista. Foi ali que conheci uma pessoa trans e iniciei o que chamamos de processo de transição. Uma loucura. Tudo ao mesmo tempo: a revolução, as descobertas, o corpo em transformação.

Lembro de uma noite em particular, quando eu e algumas amigas fomos levar uma companheira do coletivo até o ponto de ônibus. Ela morava em Campinas e enfrentava um trajeto longo até em casa. O ponto ficava ao lado de um albergue, um daqueles pontos de acolhimento para pessoas em situação de rua.

Sentada ali, esperando, havia uma senhora. Talvez aguardasse o próximo ônibus para tentar um outro albergue, já que esse poderia estar lotado. Enquanto conversávamos, percebi que ela me olhava. Mas não era um olhar de julgamento. Era um olhar cheio de perguntas. Para pessoas trans, ser olhada assim é parte do cotidiano. Olhares de dúvida, curiosidade, às vezes ódio, às vezes afeto. Andar na rua pode ser desconfortável porque sempre tem alguém tentando decifrar quem você é.

Eu segui conversando até que, de repente, a senhora se levantou, se aproximou de mim e perguntou:

— Fia, quantos anos você tem?

— Dezoito. Acabei de fazer.

Ela olhou nos meus olhos e soltou:

— Coitada ela não tem peito.

Eu e minhas amigas começamos a rir na hora. Foi inesperado, era engraçado demais.

Mas a senhora não parou:

— Mas não se preocupa, minha filha. Peito cresce. Até uns vinte anos, cresce. Olha o meu, era pequeno e cresceu.

A gente riu mais ainda. Não era maldade, não era um erro. Era só um outro modo de ver o mundo. Uma percepção que fugia da passabilidade, do que significa ser lida como mulher ou como homem. Um jeito de olhar que não se prendia aos rótulos.

Anos depois, já com 23 ou 24 anos, eu estava em outro momento da vida. Mais madura, mas ainda vivendo pequenas surpresas da transição.

Um dia, contratei uma trancista para fazer minhas tranças. Eu sou uma mulher negra e amo o visual, embora hoje tenha menos paciência para o tempo que leva. Ainda assim, quando faço, é um close.

A trancista passou o dia comigo. Conversamos sobre tudo. Ela almoçou aqui, falamos de comida, dos filhos dela, do companheiro dela. Meu companheiro também ia trançar o cabelo depois de mim, quando voltasse do trabalho. A conversa fluía leve, divertida, cheia de vida.

Em um momento, do nada, ela me perguntou:

— Você não tem vontade de engravidar?

Foi um daqueles segundos em que o tempo para. Um silêncio estranho se instalou. Ela percebeu na mesma hora o que tinha perguntado e o que isso significava para alguém como eu.

No meu caso, que sou uma mulher trans, engravidar não é uma possibilidade. Eu não tenho útero.

Ela ficou sem graça, pediu desculpas, mas eu ri. Rimos juntas. Não era sobre erro, era sobre como, às vezes, nos conectamos de um jeito que ultrapassa os limites do gênero. Sobre como essas conexões fazem com que perguntas óbvias se tornem quase ingênuas.

E eu penso na menina que eu fui. Aquela que queria ser a Mística do X-Men porque sonhava em poder se transformar em qualquer pessoa.

Mas a verdade é que eu sempre fui eu. Sempre estive aqui. Nem sempre como Sanara, mas sempre como eu.

E não foi preciso ter superpoderes para me tornar quem eu sou. Só foi preciso aceitar que o mundo é múltiplo. Que os corpos mudam. Que algumas pessoas olham para mim com dúvida, outras com afeto.

E que peito cresce. Ou não. Mas tudo bem.

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