Eu estou na Unicamp desde 2014, então vivi a greve de 2016, quando as cotas raciais e o vestibular indígena foram aprovados e pude acompanhar as claras mudanças trazidas à universidade com a entrada de mais pessoas diversas, com suas vivências e culturas. A mudança é visível, mas também é palpável na cultura que se consome, nas festas, nas pesquisas, nas aulas, nas demandas.
É com muito alívio e felicidade que agora eu consigo imaginar como a universidade vai estar daqui 5 ou 10 anos, com a presença garantida de várias turmas de cotistas trans na universidade.
Não tenho certeza se já sabemos de verdade o tamanho da nossa vitória, do impacto da implementação de cotas trans na primeira universidade estadual paulista em meio a esse ressurgimento do fascismo. Mas tenho certeza que fizemos história e mostramos que a universidade pública não vai tolerar nenhum tipo de ataque.
Inclusive, a aprovação das cotas trans é a melhor resposta possível aos recentes ataques da direita campineira. Que apareceu no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH), durante a palestra de Erika Hilton e mais duas vezes depois, na tentativa de intimidar estudantes e desmobilizar a movimentação.
Como professor de educação básica, me emociona demais poder imaginar que alunes trans têm uma nova perspectiva de futuro para além do abandono escolar e da violência e transfobia da rua.
Como aconteceu a mobilização para aprovação das cotas trans ?
A aprovação das cotas trans na Unicamp é fruto de muita luta. A greve estudantil de 2023 trouxe a pauta pro centro do debate. Entre comitês e assembleias, o Núcleo da Consciência Trans da Unicamp (NCT) foi uma das principais forças durante a greve e manteve as cotas no centro da discussão, apoiamos as outras requisições e conseguimos, por fim, um Grupo de Trabalho (GT) institucional pelas cotas trans.
O GT trabalhou todo o ano de 2024 para montar uma proposta concreta e factível, a ser implementada ainda em 2026. Após duas audiências públicas e com a proposta final já em mãos, o GT consegue a data da votação para 01/04/25.
Enquanto isso, sabendo que a luta não estava ganha, nos mobilizamos em várias frentes, incluindo garantir que a pauta fosse pública para fora da comunidade universitária. A estratégia era fazer um mega evento científico-cultural protagonizado inteiramente por pessoas trans, tão grande, que a Unicamp não poderia ignorar. Foram meses de planejamentos e desplanejamentos, reuniões e surto
As semanas que antecederam a votação foram cheias de reuniões, assembleias e falas. Não acho que consiga relatar essas últimas semanas fazendo jus ao trabalho brilhante feito pelo NCT, da divisão de tarefas, da comunicação até as estratégias políticas, a atuação de todes coordenadories foi bafônica.
A nossa força fica muito clara quando sabemos que apesar de a comunidade acadêmica ser muito conservadora, a votação foi unânime!
Essa não é uma luta única !
No meio desse processo a violência sistêmica nos atravessou e levou Agnes Lemos. Agnes era cientista social pela Unicamp, educador popular, atleta do Pogonas, membro do NCT e da comunidade Ballroom de Campinas. Ele estava em todo lugar, e a comunidade trans de Campinas sentiu em peso a sua partida.
Essa caminhada deixa muito explícito como a nossa luta não começou ontem, e muita gente já está lutando bem antes de nós. Durante a mesa de lançamento do livro “Transgeneridade e Esportes – para além do cissexismo”, Leonardo Peçanha e Leila Dumaresq, ao fazer uma homenagem a Agnes, nos relembraram que até alguns anos atrás, tínhamos que enterrar as pessoas com nomes e roupas que não eram suas. As conquistas avançam a passos lentos e somos nós que derrubamos as portas e seguiremos derrubando.
Vimos como a coletividade é forte. As lutas coletivas também são uma forma de resistência, o suporte, as identificações, os compartilhamentos fizeram dessa conquista mais forte e robusta, e vimos afinal o resultado, pois sabemos que a votação foi unânime por pressão do movimento.
Essa conquista é fruto do sonho de muita gente antes de mim, de gente que teve sonhos megalomaníacos, muito para lá do que poderia ser real, e na semana passada testemunhou o sonho virando realidade.
Pra mim, pessoalmente, foi muito cansativo, minha dissertação entrou em estado de espera (e o prazo já era curto), meu cesto de roupa suja encheu bem além do que devia. Mas testemunhar de dentro esse momento histórico que vai mudar as perspectivas de tantas pessoas, valeu cada segundo.
Sabendo que a luta é coletiva, precisamos agradecer ao Ateliê TransMoras que germinou e fez crescer o NCT e tantas realidades ao longo dos últimos 12 anos. A cada pessoa que apoiou e entregou um pouco do seu tempo para as cotas trans na Unicamp. E principalmente a cada pessoa da coordenação atual do NCT que fez tudo isso em busca de uma mudança efetiva pelas próximas gerações. Eu quero que vocês vejam e sejam vistes em vida como as pessoas gigantes que são!
Por Agnes Lemos
Só de raiva, a gente vai viver.
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