Em abril de 2025, a deputada federal Erika Hilton desistiu de viajar aos Estados Unidos para participar da Brazil Conference, organizada por Harvard e o MIT. Apesar de ter seus documentos retificados e sua identidade legalmente reconhecida pelo Estado brasileiro, as autoridades migratórias americanas a classificaram como “sexo masculino”, gerando uma situação de vulnerabilidade.
“Fiquei preocupada com o tratamento que receberia no aeroporto, das autoridades americanas, tendo em vista que o nome é feminino e o gênero descrito era masculino. Senti medo, para ser sincera. E não aceitei me submeter a esse tipo de coisa. Achei que não merecia, mesmo perdendo uma atividade importante à qual eu gostaria muito de participar, não deveria me submeter a tamanha violência e desrespeito como esse.” relata a Deputada Erika Hilton a Folha de São Paulo.
Essa notícia me atravessou. Se uma figura com poder político, apoio diplomático e documentos legalmente reconhecidos sentiu medo e desistiu de uma oportunidade importante, o que resta para nós? Para quem, além de ser uma pessoa trans, é migrante, pobre, sem documentos ou com documentos que nos contradizem?
Vivo em São Paulo há quase um ano. Nesse tempo, comecei a perceber os vazios entre as políticas de gênero e as políticas migratórias. Vi o quanto somos invisíveis — pessoas LGBTQIAP+ migrantes — nos debates públicos, e o quanto estamos ausentes na garantia efetiva de direitos.
Em 2024, fui convidado para participar da Feira do Livro da Fronteira, em Tijuana, no México. Foi uma viagem importante, mas também extremamente angustiante: precisei raspar a barba, usar documentos com meu nome feminino e solicitar infinitas cartas de convite personalizadas, com medo de ser deportado — algo que já aconteceu comigo uma vez. A carga mental de planejar uma viagem, para quem vive nessa interseção de violências, não pode ser subestimada.
Além disso, no final do mesmo ano, eu teria que viajar para o Mundial de Poesia Oral, em Togo. Não pude comparecer. Togo é um país que criminaliza a homossexualidade com penas de até dois anos de prisão. Podemos imaginar, então, qual é o lugar das pessoas trans em suas políticas de gênero. Cada passo das nossas vidas está submetido a sistemas que não nos reconhecem, nos penalizam ou nos matam.
Foto Paulx: @maricaldini.fotografia
Porque a fronteira não começa no aeroporto: ela está presente no sistema de saúde, quando o nome social não é respeitado; no transporte, quando o gênero atribuído no documento gera suspeitas; no banco, quando a foto no documento não “combina” com a expressão de gênero. A vida cotidiana de pessoas trans migrantes vira um campo de validação constante, onde o direito de existir depende da boa vontade dos outros.
Em março deste ano, depois de reunir várias pessoas trans migrantes de todo o continente, conseguimos incluir a pauta migrante na Marcha Transmasculina de São Paulo, por meio da nossa participação com o IBRAT, que entendeu a urgência de criar espaços políticos para os debates migrantes. Foi um momento significativo, uma tentativa de tornar nossas vozes visíveis dentro de um movimento que, muitas vezes, também é construído a partir de narrativas nacionais. Pela Rede Milbi, organização migrante que integra a população LGBTQIAP+ em São Paulo, estamos desenvolvendo um projeto para facilitar o acesso a informações seguras, afetivas e multilíngues para pessoas LGBTQIAP+ migrantes.
Porque acreditamos que a proteção começa com o acesso à palavra — saber quais são nossos direitos e como reivindicá-los. Desde que cheguei, percebo esse vazio e sigo lutando. Mas não posso sozinho. Não podemos sozinhes.
Diante dessas violências estruturais, me interessa pensar como o gênero, a nacionalidade e a identidade funcionam como formas de performatividade socialmente exigidas — e, ao mesmo tempo, como mecanismos de deslocamento e apagamento. Judith Butler nos ensinou que o gênero não é algo que “somos”, mas algo que “fazemos”: um ritual reiterado de citação cultural. Da mesma forma, a nacionalidade também pode ser entendida como uma performance sustentada por atos (mostrar um passaporte, usar uma língua, declarar uma residência) que validam ou negam nossa pertença. E a identidade, atravessada por essas camadas, muitas vezes só é reconhecida ao custo da negação de si.
O que acontece quando essas três performances — a de gênero, a de nacionalidade e a de identidade — colapsam ou entram em conflito? Proponho pensar esses colapsos como formas de deslocamento ritual: não cruzamos apenas fronteiras físicas, mas também simbólicas, institucionais e legais. Habitamos o limiar como modo de existência. E, nesse habitar, somos constantemente borrades, invalidades ou obrigades a performar papéis que nos violentam para poder seguir vives.
Nossa existência obriga a repensar a relação entre natureza e cultura, entre corpo e documento, entre território e subjetividade. Nessa interseção, reivindicamos não apenas reconhecimento simbólico, mas direitos concretos: o direito ao voto, à retificação dos nossos nomes em documentos oficiais, ao reconhecimento pleno da nossa identidade.
O Brasil precisa garantir que suas políticas contemplem todas as pessoas que vivem em seu território, independentemente do local de nascimento. O uso do “nome social” é um paliativo que muitas vezes falha, não é respeitado ou simplesmente não existe nos sistemas digitais. Pessoas trans migrantes não podem continuar sendo obrigadas a escolher entre segurança e dignidade.
A experiência de Erika Hilton, embora dolorosa, nos ofereceu um espelho. Refletiu o que muitos de nós vivemos diariamente, mas sem poder midiático nem apoio institucional, e mostra como nunca estamos realmente a salvo — ocupemos o lugar que for, sejamos quem formos. Hoje, mais do que nunca, precisamos construir redes de proteção e espaços políticos onde nossas vozes não apenas sejam ouvidas, mas consideradas na transformação das leis.
Tudo isso acontece ao mesmo tempo em que o Reino Unido emite uma decisão inédita: a definição de “mulher” na lei deve se basear no sexo biológico — um retrocesso que ameaça ainda mais nossas existências e demonstra como os discursos de ódio da ultradireita ganham legitimidade institucional globalmente.
Este trabalho busca abrir essa conversa.
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