Categoria: navalha

  • Banheiro é direito: quando vão respeitar a dignidade das pessoas trans?

    Banheiro é direito: quando vão respeitar a dignidade das pessoas trans?

    Na última semana, dois  episódios de violência envolvendo o direito ao acesso de pessoas trans ganhou destaque nas redes sociais e na imprensa. Em Recife, a personal trainer Kely Moraes foi impedida de usar o banheiro feminino na academia onde trabalha, após ser “confundida” com uma mulher trans. Kely, no entanto, é uma mulher cisgênera. Já na Carolina do Sul, Luca Strobel, um homem transmasculino foi agredido e preso ao usar o banheiro feminino como como obrigada a Lei, na Carolina do Sul.

    Os episódios escancaram fissuras profundas sobre como a sociedade constrói o que entende por “feminino” e “masculino” — e evidencia que determinados grupos seguem sobrevivendo sem o mínimo de dignidade. Corpos são policiados. Gêneros são questionados. E o que deveria ser um ato simples — usar o banheiro — se transforma, todos os dias, em mais um campo de batalha.

    Essa cena não é nova: o banheiro como instrumento de exclusão

    Se você já assistiu ao filme Estrelas Além do Tempo, talvez se lembre da cena em que uma das cientistas negras da NASA, mesmo promovida, era obrigada a andar quilômetros para acessar o único banheiro “permitido” para mulheres negras. A cena se passa nos anos 1960, no auge da segregação racial nos Estados Unidos. Pessoas negras não só eram impedidas de usar banheiros compartilhados, como também eram agredidas e presas por isso.

    Essa violência institucionalizada parece coisa do passado — mas continua acontecendo, sob novas formas, aqui e agora.

    “Tenho medo de ir ao banheiro”

    Sou uma mulher trans. E sim, já tive medo de acessar o banheiro. Na verdade, essa situação ainda me causa ansiedade e insegurança. Seja em shoppings, academias, zoológicos ou barzinhos, o pânico é o mesmo. Já fui repreendida em um terminal de ônibus e em um bar. Por isso, ao sair de casa, visto diversas camadas de proteção: na roupa, na postura, na fala. Porque as pessoas trans, todos os dias, são impedidas de existir com tranquilidade — até mesmo no ato mais simples: ir ao banheiro.

    Casos recentes mostram a gravidade do problema

    • Natal, 2022 – Vereadora Thabatta Pimenta impedida em shopping
      A vereadora trans Thabatta Pimenta foi barrada ao tentar usar o banheiro feminino no Shopping Via Direta. Gerentes e seguranças questionaram seus documentos. A situação foi registrada por testemunhas e gerou ampla repercussão. Em 2024, a Justiça condenou o shopping a pagar R$ 5 mil de indenização.
    • Niterói, 2024 – Travesti impedida, protesto e resistência
      A travesti Lua foi proibida de usar o banheiro feminino no Shopping Icaraí. O caso gerou protesto com “xixi simbólico” liderado pela vereadora Benny Briolly, denunciando a transfobia institucional. O episódio reacendeu o debate sobre os direitos das pessoas trans em espaços públicos.
    • Recife, 2025 – Kely Moraes confundida com mulher trans
      Kely, mulher cis, foi impedida de usar o banheiro por parecer “fora do padrão feminino”. O caso prova que a transfobia atinge até quem não é trans — e como a sociedade vigia corpos com base em estereótipos.

    E a Justiça, o que diz?

    Desde 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a transfobia deve ser equiparada ao crime de racismo. Isso significa que práticas discriminatórias contra pessoas trans, como impedir o acesso ao banheiro de acordo com sua identidade de gênero, podem ser consideradas crime.

    No entanto, casos como o de Florianópolis revelam uma realidade contraditória: mesmo com essa decisão, o Judiciário ainda falha em proteger a dignidade das pessoas trans.

    Um exemplo emblemático é o caso da mulher trans que foi impedida de usar o banheiro feminino em um shopping e acabou fazendo suas necessidades na roupa. Ela entrou com uma ação na Justiça pedindo indenização. Inicialmente, o tribunal condenou o shopping ao pagamento de R$ 15 mil. Mas o Tribunal de Justiça de Santa Catarina reverteu a decisão, alegando que o episódio não passou de um “mero dissabor”. A mulher recorreu ao STF — e o caso se arrastou até 2024.

    Quando finalmente chegou ao plenário do Supremo, a maioria dos ministros decidiu não julgar o mérito por uma questão processual: entenderam que o caso tratava de indenização e não de um tema constitucional. Na prática, o STF não discutiu o direito de pessoas trans de serem tratadas de acordo com sua identidade de gênero. O tribunal sinalizou que essa discussão poderá ocorrer no futuro — mas até lá, a dignidade das pessoas trans continua sendo negada todos os dias.

    A advogada e pesquisadora em Direitos Humanos Victória Dandara Amorim comenta que a via criminal, ainda que seja uma importante conquista, tem tido um efeito mais simbólico do que resolutivo. “O direito penal não foi feito para proteger pessoas, foi feito para encarcerar corpos indesejáveis. Principalmente da população negra, periférica, trans e travesti. A gente tem tentado subverter isso e usar como um efeito simbólico para que possamos ter respaldo ao chamar a polícia e abrir um boletim de ocorrência, por exemplo”.

    Mas, na prática, nós sabemos que a impunidade para pessoas cisgêneras costuma ser a regra em casos de transfobia. Victória ressalta que é necessário lutar em diversas frentes para que a proteção de pessoas trans se torne uma realidade concreta no Brasil. Pressionar o Estado por políticas públicas de proteção ao invés de punição, assim como levar casos como os mencionados para as cortes e para as nossas parlamentares, são estratégias importantes.

    O que diz o Ministério Público Federal?

    Em nota técnica publicada em 2023, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão alertou para a escalada de projetos legislativos que tentam restringir os direitos da população trans em banheiros e outros espaços públicos. Apenas no primeiro trimestre de 2023, mais de 60 projetos foram apresentados em câmaras municipais, assembleias legislativas e no Congresso Nacional.

    O MPF considera esses projetos inconstitucionais, por violarem o princípio da autodeterminação identitária — o direito que toda pessoa tem de ser reconhecida pelo gênero que afirma.

    Victória Dandara também chama atenção para os compromissos que o Estado brasileiro assume, tanto na Constituição — que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana — quanto em tratados internacionais, como os que estão sob a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

    As normas internacionais que regulam o Brasil e têm força constitucional garantem o direito à autodeterminação de gênero. Isso significa que, se eu me reconheço como uma pessoa trans, o Estado tem que me respeitar. Em teoria, a gente tá resguardado. Agora a questão é: como a gente pressiona os órgãos públicos para nos proteger?

    Fui impedida de usar o banheiro. O que fazer?

    Se você é uma pessoa trans e teve seu direito ao uso do banheiro negado, é possível tomar algumas medidas:

    • Registrar um boletim de ocorrência, especialmente em caso de agressão verbal ou física. Disque 100: Canal de denúncia de violações de direitos humanos. 
    • Buscar testemunhas ou registros da situação (fotos, vídeos, relatos).
    • Denunciar ao Ministério Público Federal ou Estadual.
    • Procurar apoio em núcleos jurídicos LGBTQIA+ ou defensorias públicas.

    Tornar o caso público, se sentir segurança para isso — a denúncia também é uma forma de resistência.

  • Vamos para uma Ball? Instituto Moreira Salles recebe o Circuito Ballroom: O amor é a mensagem

    Vamos para uma Ball? Instituto Moreira Salles recebe o Circuito Ballroom: O amor é a mensagem

    Abrindo os caminhos para o mês do orgulho LGBTQIAPN+, o Instituto Moreira Salles (IMS) promove, em São Paulo, entre os dias 31 de maio e 1º de junho, o Circuito Ballroom: O amor é a mensagem, com uma programação variada que inclui sessões de cinema, oficinas e uma grande Ball.

    Organizado pelas curadoras Angel Jayaci Hands Up e Statement Princess Dani Mutatis — ambas referências da cena ballroom no Brasil — o circuito celebra a potência de uma cultura criada por pessoas LGBTQIAPN+, negras e latinas nos Estados Unidos dos anos 1970, que até hoje funciona como espaço de resistência, celebração e afirmação de identidade. E que tem ganhado cada vez mais espaço no Brasil.

    “O amor é a mensagem.” Mais do que uma frase, é uma filosofia que movimenta corpos, histórias e afetos dentro de uma cultura que não é só festa — é movimento político e resposta à marginalização. “A comunidade ballroom é essa rede de afeto que ajuda a gente a lutar aqui fora. É um lugar onde encontro muitas corpas como a minha, muitas realidades parecidas com a minha. E é aí que começam os afetos, é aí que começa outra realidade”, explica Angel Jayaci Hands Up.

    Outra grande característica da cultura ballroom são as Casas, que funcionam como famílias alternativas, com figuras como “mãe” ou “pai”, oferecendo apoio emocional, moradia, acolhimento e formação artística. “Por ser filha de duas mães travestis da excelente Casa de Mutatis, sei que a ballroom é onde incentivam todos os nossos sonhos a se realizarem. É a construção de uma família para quem não teve esse afeto”, conta, Statement Princess Dani Mutatis.

    Imagem de divulgação do filme Salão de baile – This Is Ballroom.

    Programação celebra memória, estética e história

    O circuito é fruto do Potências Trans, coletivo formado por pessoas trans que trabalham no próprio IMS. A programação começa na sexta-feira, 30 de maio, às 19h, com a exibição dos filmes “The Queen” (1968) — documentário que registra os bastidores de um concurso de beleza queer dos anos 1960 — e “Queens at Heart”, curta que retrata a vida de quatro mulheres trans em Nova York na mesma década. Após a sessão, rola um bate-papo com o artista interdisciplinar Legendary Flip Couto e as curadoras.

    No sábado, 31 de maio, às 15h, duas oficinas tomam conta do espaço: a fotógrafa Star Cintia Rizoli ensina como registrar a estética das balls e, ao mesmo tempo, Trailblazer Mother Eduarda Kona Hands Up conduz uma aula de voguing, dança símbolo do movimento ballroom. As atividades são gratuitas, com distribuição de senhas uma hora antes.

    Às 18h, o cinema volta a ser protagonista com a exibição de dois filmes brasileiros: “Salão de Baile – This Is Ballroom”, de Juru e Vitã — primeiro documentário sobre a cena ballroom no Rio de Janeiro —, e “Feminino”, de Carolina Queiroz, que debate identidade de gênero e os limites entre o que é considerado masculino e feminino.

    O amor é a mensagem — e a ball também

    O grande encerramento acontece no domingo, 1º de junho, das 15h às 18h, no térreo do IMS Paulista, com a ball “O amor é a mensagem: eras ballroom”. No baile, artistas da cena competem em cinco categorias, avaliados por um júri especializado. Cada categoria tem premiação de R$ 1.000.

    A ball será apresentada pela chant Star Mother Aurora Abloh e pelo host Trailblazer Felix Pimenta, com som comandado pela DJ Maia Caos Avalanx. Para competir, é necessário ser da comunidade ballroom e fazer inscrição prévia — os detalhes serão divulgados nos canais do IMS.

    “A comunidade ballroom é um movimento político em formato de batalhas, onde celebramos nossa existência em oposição a tudo que nos é negado pela sociedade”, afirmam as curadoras. 

    O próprio nome do evento é uma homenagem direta ao clássico da música disco “Love Is the Message” (1973), do grupo MFSB — trilha que se tornou um verdadeiro hino das pistas ballroom no mundo todo. “Mais do que nostálgico, começar um baile com essa faixa é um ritual. Um lembrete de que, antes de qualquer competição, o amor é  e sempre será  a mensagem.”

    Serviço

    Circuito Ballroom: o amor é a mensagem

    De 30 de maio a 1 de junho

    entrada livre

    IMS Paulista

    Programação completa

    30 de maio (sexta)

    • 19h – Exibição dos filmes The Queen, em cópia restaurada em 4K, e Queens at Heart, seguida de conversa com Flip Couto e as curadoras | Cinema do IMS Paulista – Entrada gratuita, com distribuição de senhas 1 hora antes da exibição e limite de uma senha por pessoa.

    31 de maio (sábado)

    • 15h – Oficina Fotografia em movimento, com Star Cintia Rizoli

    Sala Multiuso | 9º andar

    Entrada gratuita, com distribuição de senhas 1 hora antes e limite de 1 senha por pessoa. 

    • 15h – Oficina Prática e introdução no voguing, com Trailblazer Mother Eduarda Kona Hands Up 

    Ateliê | 9º andar

    Entrada gratuita, com distribuição de senhas 1 hora antes e limite de 1 senha por pessoa. 

    • 18h – Exibição dos filmes Salão de baile − This Is Ballroom + Feminino | Cinema do IMS Paulista

    Entrada gratuita, com distribuição de senhas 1 hora  antes da exibição e limite de uma senha por pessoa.

    1 de junho (domingo)

    • 15h às 18h – Baile O amor é a mensagem: Eras ballroom | Térreo do IMS Paulista
    • Evento com inscrição prévia para as pessoas competidoras e aberto ao público como espectador (150 lugares em pé).As inscrições para a competição serão divulgadas futuramente nos canais do IMS.
  • Nem segurança, nem dignidade: o dilema das pessoas trans migrantes

    Nem segurança, nem dignidade: o dilema das pessoas trans migrantes


    Em abril de 2025, a deputada federal Erika Hilton desistiu de viajar aos Estados Unidos para participar da Brazil Conference, organizada por Harvard e o MIT. Apesar de ter seus documentos retificados e sua identidade legalmente reconhecida pelo Estado brasileiro, as autoridades migratórias americanas a classificaram como “sexo masculino”, gerando uma situação de vulnerabilidade.

    “Fiquei preocupada com o tratamento que receberia no aeroporto, das autoridades americanas, tendo em vista que o nome é feminino e o gênero descrito era masculino. Senti medo, para ser sincera. E não aceitei me submeter a esse tipo de coisa. Achei que não merecia, mesmo perdendo uma atividade importante à qual eu gostaria muito de participar, não deveria me submeter a tamanha violência e desrespeito como esse.” relata a Deputada Erika Hilton a Folha de São Paulo.

    Essa notícia me atravessou. Se uma figura com poder político, apoio diplomático e documentos legalmente reconhecidos sentiu medo e desistiu de uma oportunidade importante, o que resta para nós? Para quem, além de ser uma pessoa trans, é migrante, pobre, sem documentos ou com documentos que nos contradizem?

    Vivo em São Paulo há quase um ano. Nesse tempo, comecei a perceber os vazios entre as políticas de gênero e as políticas migratórias. Vi o quanto somos invisíveis — pessoas LGBTQIAP+ migrantes — nos debates públicos, e o quanto estamos ausentes na garantia efetiva de direitos.

    Em 2024, fui convidado para participar da Feira do Livro da Fronteira, em Tijuana, no México. Foi uma viagem importante, mas também extremamente angustiante: precisei raspar a barba, usar documentos com meu nome feminino e solicitar infinitas cartas de convite personalizadas, com medo de ser deportado — algo que já aconteceu comigo uma vez. A carga mental de planejar uma viagem, para quem vive nessa interseção de violências, não pode ser subestimada.

    Além disso, no final do mesmo ano, eu teria que viajar para o Mundial de Poesia Oral, em Togo. Não pude comparecer. Togo é um país que criminaliza a homossexualidade com penas de até dois anos de prisão. Podemos imaginar, então, qual é o lugar das pessoas trans em suas políticas de gênero. Cada passo das nossas vidas está submetido a sistemas que não nos reconhecem, nos penalizam ou nos matam.

    Foto Paulx: @maricaldini.fotografia

    Porque a fronteira não começa no aeroporto: ela está presente no sistema de saúde, quando o nome social não é respeitado; no transporte, quando o gênero atribuído no documento gera suspeitas; no banco, quando a foto no documento não “combina” com a expressão de gênero. A vida cotidiana de pessoas trans migrantes vira um campo de validação constante, onde o direito de existir depende da boa vontade dos outros.

    Em março deste ano, depois de reunir várias pessoas trans migrantes de todo o continente, conseguimos incluir a pauta migrante na Marcha Transmasculina de São Paulo, por meio da nossa participação com o IBRAT, que entendeu a urgência de criar espaços políticos para os debates migrantes. Foi um momento significativo, uma tentativa de tornar nossas vozes visíveis dentro de um movimento que, muitas vezes, também é construído a partir de narrativas nacionais. Pela Rede Milbi, organização migrante que integra a população LGBTQIAP+ em São Paulo, estamos desenvolvendo um projeto para facilitar o acesso a informações seguras, afetivas e multilíngues para pessoas LGBTQIAP+ migrantes.

    Porque acreditamos que a proteção começa com o acesso à palavra — saber quais são nossos direitos e como reivindicá-los. Desde que cheguei, percebo esse vazio e sigo lutando. Mas não posso sozinho. Não podemos sozinhes.

    Diante dessas violências estruturais, me interessa pensar como o gênero, a nacionalidade e a identidade funcionam como formas de performatividade socialmente exigidas — e, ao mesmo tempo, como mecanismos de deslocamento e apagamento. Judith Butler nos ensinou que o gênero não é algo que “somos”, mas algo que “fazemos”: um ritual reiterado de citação cultural. Da mesma forma, a nacionalidade também pode ser entendida como uma performance sustentada por atos (mostrar um passaporte, usar uma língua, declarar uma residência) que validam ou negam nossa pertença. E a identidade, atravessada por essas camadas, muitas vezes só é reconhecida ao custo da negação de si.

    O que acontece quando essas três performances — a de gênero, a de nacionalidade e a de identidade — colapsam ou entram em conflito? Proponho pensar esses colapsos como formas de deslocamento ritual: não cruzamos apenas fronteiras físicas, mas também simbólicas, institucionais e legais. Habitamos o limiar como modo de existência. E, nesse habitar, somos constantemente borrades, invalidades ou obrigades a performar papéis que nos violentam para poder seguir vives.

    Nossa existência obriga a repensar a relação entre natureza e cultura, entre corpo e documento, entre território e subjetividade. Nessa interseção, reivindicamos não apenas reconhecimento simbólico, mas direitos concretos: o direito ao voto, à retificação dos nossos nomes em documentos oficiais, ao reconhecimento pleno da nossa identidade.

    O Brasil precisa garantir que suas políticas contemplem todas as pessoas que vivem em seu território, independentemente do local de nascimento. O uso do “nome social” é um paliativo que muitas vezes falha, não é respeitado ou simplesmente não existe nos sistemas digitais. Pessoas trans migrantes não podem continuar sendo obrigadas a escolher entre segurança e dignidade.

    A experiência de Erika Hilton, embora dolorosa, nos ofereceu um espelho. Refletiu o que muitos de nós vivemos diariamente, mas sem poder midiático nem apoio institucional, e mostra como nunca estamos realmente a salvo — ocupemos o lugar que for, sejamos quem formos. Hoje, mais do que nunca, precisamos construir redes de proteção e espaços políticos onde nossas vozes não apenas sejam ouvidas, mas consideradas na transformação das leis.

    Tudo isso acontece ao mesmo tempo em que o Reino Unido emite uma decisão inédita: a definição de “mulher” na lei deve se basear no sexo biológico — um retrocesso que ameaça ainda mais nossas existências e demonstra como os discursos de ódio da ultradireita ganham legitimidade institucional globalmente.

    Este trabalho busca abrir essa conversa.

  • Transmídia é reconhecida em relatório da ONU sobre defensores de direitos humanos no Brasil

    Transmídia é reconhecida em relatório da ONU sobre defensores de direitos humanos no Brasil

    Na quarta-feira (05/03), a relatora especial da ONU sobre a situação de pessoas defensoras de direitos humanos, Mary Lawlor, apresentou o relatório de sua visita ao Brasil durante a 58ª Sessão Ordinária do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Realizada no ano passado, a visita teve como objetivo avaliar a situação dos defensores de direitos humanos no país e foi nessa ocasião que o codiretor da Transmídia, Caê Vatiero, expôs o cenário de violência que pessoas comunicadoras, ativistas e defensoras trans e travestis enfrentam no país.

    A partir dessa contribuição, foi destacado no relatório que:

    Jornalistas de grupos minoritários enfrentam desafios interseccionais significativos. Jornalistas transgêneros informaram à Relatora Especial que foram atacados não apenas por suas reportagens, mas como resultado de sua identidade de gênero. Isso, assim como o número chocante de assassinatos de mulheres transgênero que são defensoras dos direitos humanos, reflete o que os defensores dos direitos humanos descreveram como a “recusa do corpo transgênero” em espaços públicos.

    Lawlor ouviu cerca de 130 defensores, incluindo indígenas, quilombolas, ribeirinhos, trabalhadores rurais e de outras comunidades tradicionais, defensores LGBTQIA+, defensoras negras, jornalistas e ativistas culturais e climáticos. Além de expor a realidade alarmante enfrentada pelos defensores de direitos humanos no Brasil, especialmente de populações marginalizadas, o relatório da ONU também apresentou recomendações ao Estado, cobrando medidas para garantir a segurança dessas pessoas. 

    Caê Vatiero, Diretor Institucional da Transmídia, ao lado da Relatora Especial da ONU Mary Lawlor

    Entre as principais orientações estão a implementação de políticas públicas eficazes para a proteção de defensores no Brasil, como a formalização via decreto do Plano Nacional de Proteção a Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, o fortalecimento de mecanismos de combate à violência, investigação e responsabilização dos autores que cometem crimes contra defensores.

    “Eu fui o primeiro jornalista trans que a Relatora da ONU conheceu, o que mostra como ainda somos invisibilizados. É urgente que pessoas comunicadoras e ativistas trans e travestis também sejam reconhecidas como defensoras de direitos humanos para que a gente possa acessar e cobrar a efetividade de políticas públicas que deveriam garantir nossa segurança. Quantos de nós sabem, por exemplo, da existência do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH)?”, afirma Vatiero.

  • 2ª Marcha Transmasculina de São Paulo (e do mundo) será realizada em 30 de março

    2ª Marcha Transmasculina de São Paulo (e do mundo) será realizada em 30 de março

    Ato reivindica trabalho, moradia, saúde, educação e dignidade para pessoas transmasculinas

    No dia 30 de março de 2025, a capital paulista receberá a 2ª Marcha Transmasculina de São Paulo, um ato político e cultural que reforça a luta por direitos fundamentais da população transmasculina no Brasil. Com o tema “Transmasculines na linha de frente: Nossa luta é por trabalho, moradia, saúde, educação e dignidade”, a mobilização terá início às 12h, em frente ao Museu de Arte de São Paulo (MASP), e seguirá em marcha até a Praça Dom José Gaspar.

    A organização do evento, assim como no ano passado, é do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades – Núcleo São Paulo (IBRAT-SP), mas vem sendo construída de forma popular e coletiva. No dia 9 de fevereiro, uma assembleia popular reuniu mais de 100 pessoas para definir os rumos da Marcha deste ano, garantindo que as pautas e demandas do movimento sejam estabelecidas por aqueles que vivem essa realidade diariamente.

    Foto: Cauê Monteiro (@cauemonteiroo)

    “Ser transmasculino no Brasil é existir apesar de um CIStema que nos nega. Mas nós recusamos o apagamento. A Marcha é nosso grito coletivo, nossa afirmação de vida, cultura e resistência. Estamos aqui, organizados e em movimento, porque nossa existência é inegociável e a cidade vai nos ver, nos ouvir e sentir nossa força”, aponta Ravi Spreizner, vice-coordenador geral do IBRAT-SP. 

    Histórico e continuidade da luta

    A 1ª Marcha Transmasculina de São Paulo, realizada em 2024, marcou um momento inédito na história do movimento trans no Brasil e no mundo, levando mais de 10 mil pessoas para a Avenida Paulista para reivindicar visibilidade e direitos, de acordo com dados da PM e CET. Este ano, a Marcha reafirma seu compromisso com a luta pelo acesso digno a políticas públicas essenciais, como saúde, trabalho, moradia e educação.

    “Nossa existência não pode ser ignorada. Estamos na linha de frente da luta por direitos básicos que garantam nossa dignidade e nossa sobrevivência. A mobilização popular da Marcha reflete a urgência de políticas públicas efetivas para pessoas transmasculinas no Brasil”, afirma Kyem Ferreiro, coordenador geral do IBRAT-SP.

    IBRAT-SP: o protagonismo transmasculino na luta por direitos

    O IBRAT-SP é uma organização de referência na luta pelos direitos da população transmasculina, promovendo articulações políticas, ações de saúde pública e iniciativas culturais voltadas para o fortalecimento da comunidade. Fundado em 2012 e reestruturado em 2020, o instituto tem como objetivo principal garantir visibilidade e políticas públicas para transmasculines, articulando-se com movimentos sociais, ativistas e parlamentares.

    Além de sua atuação na Frente Parlamentar LGBTQIA+ e no Comitê Municipal de Saúde LGBTQI+, o IBRAT-SP promove eventos para a comunidade transmasculina, como o ECAT – Encontro de Crianças e Adolescentes Trans, Vozes da Terra – que em sua ultima edição abordou transmasculinidades em retomada indígena, e Nossos Corpos em Movimento, que abordou saúde mental e física para pessoas trans.

    A Marcha é fruto de um trabalho contínuo do movimento transmasculino, que há anos vem construindo espaços de luta e resistência. 

  • FONATRANS lança pesquisa histórica sobre a população trans negra no Brasil

    FONATRANS lança pesquisa histórica sobre a população trans negra no Brasil

    O Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (FONATRANS) fez o lançamento do relatório “Travestilidades Negras: Movimento Social, Ativismo e Políticas Públicas” durante a Marcha em Brasília, no dia 26 de janeiro de 2025, dando início a um debate nacional sobre as demandas da população trans negra. Agora, o relatório terá seu segundo lançamento no dia 7 de fevereiro, no Museu da Vida, na Fiocruz, Rio de Janeiro.

    O encontro será conduzido com o apoio da diretora Valdilea Veloso, do Instituto Nacional de Infectologia da Fiocruz, e organizado por Thaylla Varggas, travesti preta, assistente em pesquisa clínica no INI-Fiocruz, coordenadora do FONATRANS no Rio de Janeiro e delegada nacional de saúde pelo Projeto Equidade SUS.

    Idealizado pela presidenta Jovanna Cardoso, conhecida como Jovanna Baby, o estudo pioneiro marca um momento crucial para a visibilidade e os direitos da comunidade trans preta no Brasil. Liderança reconhecida na luta pelos direitos das pessoas trans e travestis desde os anos 1980, Jovanna conduziu a concepção da pesquisa, que traz à tona as realidades vividas por travestis e pessoas trans negras e negros. 

    O relatório aborda temas centrais como renda, escolaridade, saúde, empregabilidade e acesso a programas sociais, detalhando as desigualdades que impactam essa população. A pesquisa, desenvolvida pela pesquisadora travesti Jessica Rodrigues, da Fiocruz Piauí, vai além de identificar desafios: ela busca fundamentar políticas públicas inclusivas e transformadoras. 

    A apresentação do relatório “Travestilidades Negras” reforça a urgência de construir um Brasil mais inclusivo, que valorize a diversidade e garanta a dignidade para todas as pessoas. Com dados concretos, o relatório fornece subsídios para a promoção da igualdade, justiça social e garantia de direitos humanos para pessoas trans pretas em todo o país.

    PROGAMAÇÃO:

    • 08:30 – 09:00:
      • Recepção e Credenciamento + COFFEBREAK
    • 09:00 – 09:30:
      • Abertura oficial + Apresentação institucional do INi e FONATRANS RJ
    • 09:30 – 11:45:
      • Primeira mesa: Panorama das pesquisas e Contexto histórico (Histórias, desafios e potências)
    • 11:45 – 12:00:
      • Intervalo
    • 12:00 – 13:00:
      • Apresentação Cultural: BALLROOM
    • 13:00 – 14:00:
      • Almoço
    • 14:00 – 15:45:
      • Segunda mesa: Políticas públicas e Ativismo social
    • 15:45 – 16:00:
      • Intervalo
    • 16:00 – 16:40:
      • Homenagens (Entrega de troféus, moções para personalidades e aliades que contribuem com o fortalecimento do movimento trans e travestis negras e negros no Brasil)
    • 16:40 – 17:00:
      • Encerramento
  • Além da jornada 6×1: o mercado de trabalho precarizado e as vivências trans

    Além da jornada 6×1: o mercado de trabalho precarizado e as vivências trans

    Nas últimas semanas, a luta pelo fim da jornada 6×1 ganhou força nas redes sociais. A proposta, impulsionada pelo movimento “Vida Além do Trabalho” (VAT), liderado por Rick Azevedo, vereador do PSOL no Rio de Janeiro, foi levada à deputada federal Erika Hilton (PSOL), que apresentou a iniciativa como uma emenda parlamentar para reduzir a carga horária semanal dos trabalhadores para 36 horas.

    O protagonismo de Erika Hilton tem reforçado o papel das pessoas trans e travestis na política, evidenciando sua contribuição nas lutas por melhores condições de trabalho e direitos. “Erika liderar uma proposta que erradica a escala 6×1 é fundamental para a comunidade trans. Ela traz uma agenda de direitos trabalhistas e promove uma nova consciência de classe, colocando nossa comunidade no centro do debate”, afirma Caia Maria, pesquisadora e conselheira do Centro de Pesquisa Transfeminista.

    Para a pesquisadora, a luta pelo fim da escala 6×1 é mais do que uma reivindicação trabalhista: é um passo essencial para combater a exclusão estrutural e construir um mercado de trabalho mais justo e inclusivo para a comunidade trans e travesti.

    O texto inicial da PEC conta com 230 assinaturas e aguarda ser protocolado no próximo ano. Após isso, será analisado na fase de admissibilidade, etapa que verifica se a proposta não fere cláusulas pétreas da Constituição. Sendo aprovada, segue para uma Comissão Especial, onde pode ser revisada antes de ser votada no plenário da Câmara. Para aprovação, são necessários votos favoráveis de 3/5 dos deputados (308 votos) em dois turnos. Com a aprovação na Câmara, o texto segue para o Senado e, se aprovado sem alterações, é promulgado como emenda constitucional.

    O que é a Escala 6×1?

    A Escala 6×1, vigente há 81 anos no Brasil, prevê seis dias consecutivos de trabalho com um dia de descanso, totalizando, em média, 44 horas semanais. Por exemplo, um trabalhador pode ter uma folga por semana aos domingos ou em outro dia, dependendo do acordo com a empresa.

    Os desafios de pessoas trans no mercado de trabalho

    No Brasil, uma das maiores causas de afastamento por auxílio-doença, segundo dados da Previdência Social, está relacionada a transtornos mentais, sendo depressão e ansiedade os mais comuns. Muitas vezes, essas condições estão ligadas a modelos de trabalho precarizados, com vínculos frágeis, carga horária excessiva, no caso de pessoas trans e travestis, o preconceito como agravante.

    “Sinto que estou em uma escala 7×0, sem descanso real e sempre cansado. Em São Paulo, tudo é corrido: trabalhamos para pagar as contas, mas falta energia para lazer”, relata Kairos Castro, pessoa não binária trans masculina, escritor, poeta e coordenador cultural do IBRAT-SP.

    Kairos trabalha atualmente em uma biblioteca, mas já enfrentou discriminação devido à sua identidade de gênero em empregos anteriores, que não respeitavam seus pronomes ou ofereciam um ambiente inclusivo. Esse cenário agravou o desgaste físico e emocional. “Antes eu trabalhava em escritório, onde me assumi trans no ambiente de trabalho e, por anos, não fui respeitado. Passava cinco horas ou mais dentro do ônibus, somando ida e volta, mas tinha finais de semana livres, o que permitia algum lazer. Hoje, meu único dia de folga é usado para resolver questões pessoais ou realizar outros trabalhos. Isso torna o lazer quase impossível”, acrescenta.

    Outro fator é a racialidade: o peso de ser uma pessoa negra em ambientes pouco racializados, em que pesquisas mostram que pessoas negras são maioria na escala 6×1 e recebem os menores salários. Elu destaca que ser a única pessoa trans em alguns espaços também gera um clima de solidão e impotência.

    Sem tempo para lazer ou para outras tarefas do dia a dia, Kairos ainda recorre a outros trabalhos, como freelancer em eventos e trabalhos artísticos, para complementar a renda no final do mês. Isso evidencia que, mesmo com a “estabilidade” da carteira assinada, para sobreviver, elu ainda trabalha nos únicos dias de descanso.

    De acordo com dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), apenas 4% das pessoas trans têm carteira assinada, enquanto 90% recorrem à prostituição devido à exclusão do mercado formal de trabalho.

    A pesquisadora Caia Maria também destaca os desafios impostos pela reforma trabalhista de 2017, sancionada pelo ex-presidente Michel Temer, que precarizou sindicatos e ampliou a terceirização. “Como falar de aposentadoria, se não há perspectiva de envelhecimento? Como discutir sindicalização, se o trabalho sexual sequer é reconhecido? E como lutar por direitos trabalhistas, se a maioria nunca teve carteira assinada?”, questiona.

    O que diz a proposta de diminuição de carga de trabalho? 

    A proposta busca alterar o texto do inciso XII do artigo 7 da Constituição federal.

    Artigo atual

    O art. 7º , XIII , da CF/88 , estabelece que a duração normal do trabalho não poderá ser superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais. Logo, devem ser consideradas como horas extras aquelas que excederem a 8ª hora diária e não apenas as que ultrapassarem a 44ª hora semanal.

    Nova proposta 

    Art.7º, inciso XIII: “duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e trinta e seis horas semanais, com jornada de trabalho de quatro dias por semana, facultada a compensação de horários e a redução de jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho”.

  • Crianças trans como alvo: legislação existente não conseguiu barrar transfobia nas eleições

    Crianças trans como alvo: legislação existente não conseguiu barrar transfobia nas eleições

    As eleições municipais de 2024 foram marcadas pela transfobia. Em todo o país, candidaturas concorrendo à vereança e prefeitura investiram em campanhas que atacavam os direitos da população trans, em especial, de crianças trans. Frases como “crianças trans não existem”, “deixem nossas crianças em paz” ou “isso é um crime contra a infância”, divulgadas massivamente em redes sociais ou até mesmo em outdoors espalhados pelos municípios, fizeram da pauta o “kit gay” de 2024. 

    Ainda que desde 2019 o Superior Tribunal Federal (STF) tenha reconhecido a transfobia como crime e a Justiça Eleitoral vede o uso de discursos discriminatórios durante as campanhas eleitorais, profissionais ouvidos pelo Nonada Jornalismo e pela Transmídia afirmaram que a legislação vigente não foi suficiente para barrar a transfobia nas eleições. 

    Embora o uso da pauta de crianças trans não seja uma estratégia eleitoral nova, usada com objetivo de gerar pânico moral e disseminar desinformação, organizações que defendem os direitos de pessoas trans já previam que esse tema seria intensificado nas eleições municipais deste ano. Em março, a ONG Minha Criança Trans, junto com outras 18 organizações, enviou um ofício ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) solicitando que o órgão proibisse o uso de notícias falsas, pronunciamentos e conteúdos transfóbicos contra crianças e adolescentes trans nas campanhas eleitorais.

    Em agosto, cinco meses depois, o TSE respondeu o pedido da organização afirmando que “entende que o aparato normativo em vigor revela-se suficiente para cobrir eventuais manifestações discriminatórias contra esse grupo de pessoas no contexto das campanhas eleitorais deste ano”. 

    Além disso, o órgão reforçou o uso dos aplicativos Pardal e do Sistema de Alertas de Desinformação Eleitoral – SIADE para o recebimento de denúncias e sugeriu a expedição de comunicação aos Tribunais Regionais Eleitorais (TRE) para dar publicidade ao pedido da ONG e o “encaminhamento ao Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação (CIEDDE) para acompanhar possíveis manifestações discriminatórias durante as eleições contra pessoas trans e toda a comunidade LGBTQIAPN+”.   

    Apesar dos esforços antecipados para impedi-la, a transfobia esteve presente nas campanhas. Em agosto, a então candidata à vereança da capital paulista e mestra em Ciências Sociais Carolina Iara (PSOL) entrou com uma representação no Tribunal Regional Eleitoral (TRE-SP) contra Lucas Pavanato (PL), vereador mais votado do país, com denúncia por propaganda irregular, discriminatória e transfóbica. Os panfletos distribuídos por Pavanato continham promessas eleitorais com ataques diretos aos direitos da população e de crianças trans.

    A denúncia foi embasada pela resolução nº 23.610/2019 do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que proíbe a veiculação de “preconceitos de origem, etnia, raça, sexo, cor, idade, religiosidade, orientação sexual, identidade de gênero ou contra pessoas com deficiência”. O TRE-SP, por sua vez, respondeu negativamente, afirmando que o candidato estava exercendo sua liberdade de expressão, e permitindo que ele tivesse direito de resposta.

    Em 2022, Carol Iara foi eleita com aproximadamente 250 mil votos junto à bancada feminista e é considerada um dos principais nomes pela defesa dos direitos LGBTQIAPN+ em São Paulo. Para a socióloga, há uma conjuntura política que coloca as vidas de pessoas trans, com o foco nas crianças, como alvo. “Faz parte da agenda internacional de institucionalização da LGBTFobia, mas principalmente da transfobia, que tem se utilizado dessa pauta como a principal para atrair não somente os votos dos conservadores de extrema-direita, mas também dos religiosos que não são, necessariamente, de extrema-direita.”

    Os ataques não começaram no período eleitoral. Em 2023, o deputado federal Nikolas Ferreira vestia uma peruca, proferindo ofensas transfóbicas no púlpito do Congresso Nacional. O episódio se tornou um marco da falta de investigação de julgamento de políticos brasileiros que se utilizam de ataques discriminatórios em instituições públicas. “Ele fez um ataque direto às pessoas trans e nada aconteceu com ele, então, não é uma questão apenas do TSE ou TRE como coniventes, mas é toda uma estrutura, uma gama de instituições”, explica Carol Iara.

    Para Fernando Neisser, advogado especialista em direito eleitoral, não há uma prerrogativa do TSE e da legislação eleitoral que proíba um tópico específico de ser objeto de discussão nas eleições. “O que a gente não quer e não aceita é uma abordagem odiosa desse tema [de crianças trans]. Isso tem que ser visto caso a caso e quem vai fazer isso é a primeira instância, é o juiz da zona eleitoral respectiva. Talvez o cerne seja conseguir que o judiciário absorva um conceito de transfobia mais abrangente, que gere uma proteção maior”, afirma.

    A socióloga Carol Iara explica que utilizar a pauta trans como capital político é uma estratégia consolidada, em todas as regiões do país. “Não se trata apenas de gostar ou não gostar, de ser preconceituoso ou não com pessoas trans. É sobre entender que a nossa existência está dentro de um tabuleiro político enorme, muito estratégico. Então, digamos assim, nós nos transformamos em ‘joias da coroa’, peças importantes dentro do tabuleiro político.”

    Fragilidade na legislação 

    Em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu uma lacuna jurídica na proteção à população LGBTQIAP+ contra a violência e determinou que condutas de ódio motivadas por orientação sexual ou identidade de gênero fossem criminalizadas. Ainda que esse reconhecimento tenha sido um marco no movimento, até o momento não há uma lei específica que aborde diretamente a questão. Atualmente, a LGBTQIA+fobia é enquadrada na Lei n° 7.716/89, conhecida como Lei do Racismo. Por que isso parece não ser suficiente?

    Da graduação ao doutorado, o advogado e professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) Davi Haydee estuda sobre a ausência e a falta de aplicabilidade de legislações voltadas para a proteção de pessoas transexuais e travestis no Brasil. Na graduação, estudou sobre como uma Resolução e uma Portaria no Pará, que deveriam garantir o uso do nome social nas escolas, não eram colocadas em prática pela falta de conhecimento sobre a existência desses dispositivos. “Enquanto por um lado, as legislações existentes não são aplicadas, por outro lado, temos a total ausência de legislações específicas para, por exemplo, investigar e responsabilizar quem comete crimes com motivação LGBTFóbica.” 

    Embora exista a decisão do STF, o professor explica que a responsabilização ainda é escassa. “Muitas vezes há uma falta de preparo do próprio sistema de justiça em compreender essas violências como ilícitos.” Para Dandara Rudsan, advogada e defensora de direitos humanos, o fato da transfobia ser crime no Brasil não garante que pessoas trans não sejam atacadas: “É uma legislação frágil. Tudo que nós temos hoje relacionado à legislação que protege de alguma forma pessoas transgêneras são resoluções e portarias, jurisprudências, julgados coletivos.” 

    Dandara analisa que o Pará, assim como grande parte da região Amazônica, também foi palco para os discursos anti-trans nas eleições. Um exemplo é a campanha promovida pelo deputado federal Éder Mauro (PL), que disputou o segundo turno da prefeitura  em Belém. Em outubro, o candidato usou as redes sociais para atacar as pessoas transgêneras, e espalhou outdoors pela cidade dizendo “Crianças trans não existem”.

    Carol Iara tem duas hipóteses para explicar a falta de proteção legal que as pessoas trans sofrem. A primeira seria uma falta de letramento, por parte das primeiras instâncias do judiciário, ao fato do decreto do STF considerar a transfobia como crime. A segunda seria que a população trans está apartada dos direitos, como mostram pelo menos 39 projetos anti-trans tramitando no Congresso e nas Assembleias Legislativa atualmente. “A Extrema-direita utiliza as pessoas trans como linha de frente, mas não podemos esquecer também que, no fundo, é uma ataque a toda a comunidade [LGBTQIAP+]”, destaca. 

    Em novembro, a Agência Diadorim lançou a Observatória, plataforma que vai acompanhar projetos de lei pró e anti-LGBTQIA + apresentados nas assembleias estaduais, na Câmara dos Deputados e no Senado. De janeiro de 2019 a outubro de 2024, de acordo com o levantamento, 1.012 projetos de lei desse tipo foram apresentados por parlamentares, somando dados das esferas estadual e federal. Do total, 575 são favoráveis à população LGBTQIA + e 437 são prejudiciais.

    A atualização do discurso do ‘kit gay’

    O ataque específico a crianças trans foi feito de forma semelhante por diferentes candidatos. “O recorte de crianças e adolescentes trans têm sido politicamente utilizado de uma forma muito diferente do recorte LGBTI em um contexto geral. Ninguém fala que uma pessoa gay não existe, ninguém fala que uma mulher trans não existe, mas falam que crianças trans não existem”, explica Thamirys Nunes, presidenta da ONG Minha Criança Trans. 

    Fundada em 2022, a ONG é a primeira organização do Brasil a tratar exclusivamente das questões que envolvem saúde, qualidade de vida, políticas públicas e direitos de crianças e adolescentes transgêneres. A presidente conta que fundou a organização ao perceber que a filha, uma menina trans, sofria muito preconceito e, especialmente, a partir da falta de informação nos ambientes que frequentava. 

    “É um assunto que não é consenso. É mais fácil você atacar um assunto que não tem uma norma definida e que não tem um posicionamento do Estado. A pauta das crianças e adolescentes trans vive num limbo. A maior parte das instituições que falam de direitos de crianças e adolescentes têm viés ou um histórico religioso.”

    Segundo Thamirys, outra lacuna que torna as crianças e adolescentes trans mais vulneráveis é que os próprios direitos adquiridos, como a decisão do STF, não falam especificamente sobre crianças trans. “Ninguém quer tocar no assunto, é como se fosse a batata quente que todo mundo quer jogar um para o outro, não é nem de criança e nem LGBT, não é do estado, não é de ninguém.”

    Carol Iara acredita que o ataque direcionado a crianças trans foi a fake news escolhida para as eleições de 2024, assim como ocorreu com o “kit gay”, em 2022, e com a “mamadeira de piroca”, em 2018. “As fake news estão levando para a população que nós queremos ‘travestilizar’ as nossas crianças, quando estamos querendo cuidar delas. [Falam] como se quiséssemos impor uma identidade de gênero, sendo que, na verdade, é sempre o oposto. A nós que é imposta a cisgeneridade”, explica. 

    Para o psicólogo Dan Brosko, o ataque e a negação da identidade de crianças trans não é uma novidade. “Dizer que criança trans não existe é também uma estratégia perversa para afirmar que nenhum adulto é legitimamente trans, ou seja, que para ser de fato trans, houve algum “desvio”, já que na infância estava “tudo normal”. É uma propaganda sobre patologização”, comenta.

    Uma máquina comunicacional anti-trans

    Novamente, a desinformação, o discurso de ódio e a polarização ocorreram de forma massiva nas eleições municipais, afirma o vice-coordenador do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades, Ravi Spreizer. “Em todo o Brasil, candidaturas trans ou com pautas de defesa LGBTQIAPN+ enfrentaram uma intensa onda de ataques, frequentemente ancorados em espalhar teorias infundadas. Um tema recorrente foi a alegação de que nossas pautas seriam uma tentativa de “cooptar” crianças a serem trans, hormonizando-as enquanto menores de idade, uma narrativa amplamente desmentida”, afirma.

    Em um ano, de julho de 2023 a junho de 2024, ao menos 124 publicações contra crianças e adolescentes trans foram impulsionadas por políticos de extrema-direita nas plataformas de anúncios das Meta. A lista inclui parlamentares eleitos, entre deputados, vereadores, senadores e, à época, pré-candidatos, que investiram grandes valores em propagandas anti-trans. 

    Essa estratégia de viralizar nas redes com pautas anti-trans e, consequentemente, impactar o resultado das urnas é o que Carol Iara chama de efeito de uma grande “máquina comunicacional” da extrema-direita. Embora a presença de parlamentares trans nas câmaras municipais, estaduais e no Congresso seja crescente, ela considera que ainda é desigual o poder para informar e se opor à desinformação. 

    Em 2024, diversas capitais seguiram elegendo candidatas trans e travestis. Em Porto Alegre, Natasha Ferreira (PT) e Atena Beauvoir (PSOL) formaram a primeira “bancada trans” da cidade. Segundo Dandara, a reação dos políticos é uma resposta à crescente conquista de poder observada em períodos eleitorais anteriores, com a eleição de Erika Hilton (PSOL) e de Duda Salabert (PDT), por exemplo.

    E agora, para onde vamos?

    Na semana após o primeiro turno das eleições, Carol Iara organizou diversas rodas de conversa em São Paulo. Ela acredita que essa é uma forma de mobilização efetiva no combate aos programas anti-trans vigentes. “Nós estamos em um período difícil, em que não tem grandes acontecimentos nas ruas. Nós estamos sós. Em 2013, milhões de pessoas estavam na rua reivindicando coisas. Agora, não tem nenhuma perspectiva no sentido mais disruptivo”, reflete. “Precisamos mobilizar e organizar as pessoas, para além de ganhar ou perder eleições. A gente não pode pensar que acabou a eleição, acabou a política. Muito pelo contrário”, destaca Carol Iara. 

    Uma perspectiva de avanço, segundo Davi Haydee, é a efetivação do Formulário “Rogéria”, que pretende mapear e levantar dados sobre violência LGBTfóbicas. Em setembro deste ano, o governo federal e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) assinaram um Acordo para a implementação do Formulário de Registro de Ocorrência Geral de Emergência e Risco Iminente à Comunidade LGBTQIA + em âmbito nacional. A expectativa é de que o procedimento ajude no letramento das diversas instâncias e instituições, para além das cortes superiores, sobre transfobia enquanto crime. 

    Do ponto de vista da conquista de direitos, Ravi Spreizner avalia que o momento é de atenção. “É de se esperar muitos embates envolvendo pautas de gênero e sexualidade nos próximos 4 anos”, diz Ravi. Ele acredita que as eleições de 2024 mostram que a luta por direitos da população trans está em um ponto crucial: “Estamos enfrentando tanto oportunidades de avanço, quanto desafios significativos diante de uma retórica que frequentemente distorce as pautas da comunidade.”