Autor: Sanara Santos

  • Banheiro é direito: quando vão respeitar a dignidade das pessoas trans?

    Banheiro é direito: quando vão respeitar a dignidade das pessoas trans?

    Na última semana, dois  episódios de violência envolvendo o direito ao acesso de pessoas trans ganhou destaque nas redes sociais e na imprensa. Em Recife, a personal trainer Kely Moraes foi impedida de usar o banheiro feminino na academia onde trabalha, após ser “confundida” com uma mulher trans. Kely, no entanto, é uma mulher cisgênera. Já na Carolina do Sul, Luca Strobel, um homem transmasculino foi agredido e preso ao usar o banheiro feminino como como obrigada a Lei, na Carolina do Sul.

    Os episódios escancaram fissuras profundas sobre como a sociedade constrói o que entende por “feminino” e “masculino” — e evidencia que determinados grupos seguem sobrevivendo sem o mínimo de dignidade. Corpos são policiados. Gêneros são questionados. E o que deveria ser um ato simples — usar o banheiro — se transforma, todos os dias, em mais um campo de batalha.

    Essa cena não é nova: o banheiro como instrumento de exclusão

    Se você já assistiu ao filme Estrelas Além do Tempo, talvez se lembre da cena em que uma das cientistas negras da NASA, mesmo promovida, era obrigada a andar quilômetros para acessar o único banheiro “permitido” para mulheres negras. A cena se passa nos anos 1960, no auge da segregação racial nos Estados Unidos. Pessoas negras não só eram impedidas de usar banheiros compartilhados, como também eram agredidas e presas por isso.

    Essa violência institucionalizada parece coisa do passado — mas continua acontecendo, sob novas formas, aqui e agora.

    “Tenho medo de ir ao banheiro”

    Sou uma mulher trans. E sim, já tive medo de acessar o banheiro. Na verdade, essa situação ainda me causa ansiedade e insegurança. Seja em shoppings, academias, zoológicos ou barzinhos, o pânico é o mesmo. Já fui repreendida em um terminal de ônibus e em um bar. Por isso, ao sair de casa, visto diversas camadas de proteção: na roupa, na postura, na fala. Porque as pessoas trans, todos os dias, são impedidas de existir com tranquilidade — até mesmo no ato mais simples: ir ao banheiro.

    Casos recentes mostram a gravidade do problema

    • Natal, 2022 – Vereadora Thabatta Pimenta impedida em shopping
      A vereadora trans Thabatta Pimenta foi barrada ao tentar usar o banheiro feminino no Shopping Via Direta. Gerentes e seguranças questionaram seus documentos. A situação foi registrada por testemunhas e gerou ampla repercussão. Em 2024, a Justiça condenou o shopping a pagar R$ 5 mil de indenização.
    • Niterói, 2024 – Travesti impedida, protesto e resistência
      A travesti Lua foi proibida de usar o banheiro feminino no Shopping Icaraí. O caso gerou protesto com “xixi simbólico” liderado pela vereadora Benny Briolly, denunciando a transfobia institucional. O episódio reacendeu o debate sobre os direitos das pessoas trans em espaços públicos.
    • Recife, 2025 – Kely Moraes confundida com mulher trans
      Kely, mulher cis, foi impedida de usar o banheiro por parecer “fora do padrão feminino”. O caso prova que a transfobia atinge até quem não é trans — e como a sociedade vigia corpos com base em estereótipos.

    E a Justiça, o que diz?

    Desde 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a transfobia deve ser equiparada ao crime de racismo. Isso significa que práticas discriminatórias contra pessoas trans, como impedir o acesso ao banheiro de acordo com sua identidade de gênero, podem ser consideradas crime.

    No entanto, casos como o de Florianópolis revelam uma realidade contraditória: mesmo com essa decisão, o Judiciário ainda falha em proteger a dignidade das pessoas trans.

    Um exemplo emblemático é o caso da mulher trans que foi impedida de usar o banheiro feminino em um shopping e acabou fazendo suas necessidades na roupa. Ela entrou com uma ação na Justiça pedindo indenização. Inicialmente, o tribunal condenou o shopping ao pagamento de R$ 15 mil. Mas o Tribunal de Justiça de Santa Catarina reverteu a decisão, alegando que o episódio não passou de um “mero dissabor”. A mulher recorreu ao STF — e o caso se arrastou até 2024.

    Quando finalmente chegou ao plenário do Supremo, a maioria dos ministros decidiu não julgar o mérito por uma questão processual: entenderam que o caso tratava de indenização e não de um tema constitucional. Na prática, o STF não discutiu o direito de pessoas trans de serem tratadas de acordo com sua identidade de gênero. O tribunal sinalizou que essa discussão poderá ocorrer no futuro — mas até lá, a dignidade das pessoas trans continua sendo negada todos os dias.

    A advogada e pesquisadora em Direitos Humanos Victória Dandara Amorim comenta que a via criminal, ainda que seja uma importante conquista, tem tido um efeito mais simbólico do que resolutivo. “O direito penal não foi feito para proteger pessoas, foi feito para encarcerar corpos indesejáveis. Principalmente da população negra, periférica, trans e travesti. A gente tem tentado subverter isso e usar como um efeito simbólico para que possamos ter respaldo ao chamar a polícia e abrir um boletim de ocorrência, por exemplo”.

    Mas, na prática, nós sabemos que a impunidade para pessoas cisgêneras costuma ser a regra em casos de transfobia. Victória ressalta que é necessário lutar em diversas frentes para que a proteção de pessoas trans se torne uma realidade concreta no Brasil. Pressionar o Estado por políticas públicas de proteção ao invés de punição, assim como levar casos como os mencionados para as cortes e para as nossas parlamentares, são estratégias importantes.

    O que diz o Ministério Público Federal?

    Em nota técnica publicada em 2023, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão alertou para a escalada de projetos legislativos que tentam restringir os direitos da população trans em banheiros e outros espaços públicos. Apenas no primeiro trimestre de 2023, mais de 60 projetos foram apresentados em câmaras municipais, assembleias legislativas e no Congresso Nacional.

    O MPF considera esses projetos inconstitucionais, por violarem o princípio da autodeterminação identitária — o direito que toda pessoa tem de ser reconhecida pelo gênero que afirma.

    Victória Dandara também chama atenção para os compromissos que o Estado brasileiro assume, tanto na Constituição — que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana — quanto em tratados internacionais, como os que estão sob a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

    As normas internacionais que regulam o Brasil e têm força constitucional garantem o direito à autodeterminação de gênero. Isso significa que, se eu me reconheço como uma pessoa trans, o Estado tem que me respeitar. Em teoria, a gente tá resguardado. Agora a questão é: como a gente pressiona os órgãos públicos para nos proteger?

    Fui impedida de usar o banheiro. O que fazer?

    Se você é uma pessoa trans e teve seu direito ao uso do banheiro negado, é possível tomar algumas medidas:

    • Registrar um boletim de ocorrência, especialmente em caso de agressão verbal ou física. Disque 100: Canal de denúncia de violações de direitos humanos. 
    • Buscar testemunhas ou registros da situação (fotos, vídeos, relatos).
    • Denunciar ao Ministério Público Federal ou Estadual.
    • Procurar apoio em núcleos jurídicos LGBTQIA+ ou defensorias públicas.

    Tornar o caso público, se sentir segurança para isso — a denúncia também é uma forma de resistência.

  • O Tempo do Corpo

    O Tempo do Corpo

    Minha história começa em Santo André, no ABC Paulista, quando eu fazia parte de um coletivo anarquista. Foi ali que conheci uma pessoa trans e iniciei o que chamamos de processo de transição. Uma loucura. Tudo ao mesmo tempo: a revolução, as descobertas, o corpo em transformação.

    Lembro de uma noite em particular, quando eu e algumas amigas fomos levar uma companheira do coletivo até o ponto de ônibus. Ela morava em Campinas e enfrentava um trajeto longo até em casa. O ponto ficava ao lado de um albergue, um daqueles pontos de acolhimento para pessoas em situação de rua.

    Sentada ali, esperando, havia uma senhora. Talvez aguardasse o próximo ônibus para tentar um outro albergue, já que esse poderia estar lotado. Enquanto conversávamos, percebi que ela me olhava. Mas não era um olhar de julgamento. Era um olhar cheio de perguntas. Para pessoas trans, ser olhada assim é parte do cotidiano. Olhares de dúvida, curiosidade, às vezes ódio, às vezes afeto. Andar na rua pode ser desconfortável porque sempre tem alguém tentando decifrar quem você é.

    Eu segui conversando até que, de repente, a senhora se levantou, se aproximou de mim e perguntou:

    — Fia, quantos anos você tem?

    — Dezoito. Acabei de fazer.

    Ela olhou nos meus olhos e soltou:

    — Coitada ela não tem peito.

    Eu e minhas amigas começamos a rir na hora. Foi inesperado, era engraçado demais.

    Mas a senhora não parou:

    — Mas não se preocupa, minha filha. Peito cresce. Até uns vinte anos, cresce. Olha o meu, era pequeno e cresceu.

    A gente riu mais ainda. Não era maldade, não era um erro. Era só um outro modo de ver o mundo. Uma percepção que fugia da passabilidade, do que significa ser lida como mulher ou como homem. Um jeito de olhar que não se prendia aos rótulos.

    Anos depois, já com 23 ou 24 anos, eu estava em outro momento da vida. Mais madura, mas ainda vivendo pequenas surpresas da transição.

    Um dia, contratei uma trancista para fazer minhas tranças. Eu sou uma mulher negra e amo o visual, embora hoje tenha menos paciência para o tempo que leva. Ainda assim, quando faço, é um close.

    A trancista passou o dia comigo. Conversamos sobre tudo. Ela almoçou aqui, falamos de comida, dos filhos dela, do companheiro dela. Meu companheiro também ia trançar o cabelo depois de mim, quando voltasse do trabalho. A conversa fluía leve, divertida, cheia de vida.

    Em um momento, do nada, ela me perguntou:

    — Você não tem vontade de engravidar?

    Foi um daqueles segundos em que o tempo para. Um silêncio estranho se instalou. Ela percebeu na mesma hora o que tinha perguntado e o que isso significava para alguém como eu.

    No meu caso, que sou uma mulher trans, engravidar não é uma possibilidade. Eu não tenho útero.

    Ela ficou sem graça, pediu desculpas, mas eu ri. Rimos juntas. Não era sobre erro, era sobre como, às vezes, nos conectamos de um jeito que ultrapassa os limites do gênero. Sobre como essas conexões fazem com que perguntas óbvias se tornem quase ingênuas.

    E eu penso na menina que eu fui. Aquela que queria ser a Mística do X-Men porque sonhava em poder se transformar em qualquer pessoa.

    Mas a verdade é que eu sempre fui eu. Sempre estive aqui. Nem sempre como Sanara, mas sempre como eu.

    E não foi preciso ter superpoderes para me tornar quem eu sou. Só foi preciso aceitar que o mundo é múltiplo. Que os corpos mudam. Que algumas pessoas olham para mim com dúvida, outras com afeto.

    E que peito cresce. Ou não. Mas tudo bem.