Há quem diga que o povo trans não deve ser de Axé. Mas nós sempre fomos de Orixá. Somos Iyalorixá, Babalorixá, Iaô, Ekedji, Ogã, Abiã, filhas, filhos e filhes de Santo. Saudamos Exu nas encruzilhadas, batemos cabeça no chão do terreiro, pedimos a bênção. Aprendemos com os mais velhos, cantamos, dançamos e cultuamos nossa ancestralidade.
No Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, celebrado em 21 de março, a Transmídia destaca a importância dos terreiros para a população trans e travesti no Brasil. Nós, que vivemos a exclusão social e muitas vezes familiar, encontramos (e nos reencontramos) nos Ilês uma nova possibilidade de vida, amor e união.
Nós também somos um povo ancestral
Ao mesmo tempo em que escutamos diversos relatos de transfobia em casas de Axé, também presenciamos a força e resistência da nossa comunidade nos terreiros de todo o Brasil. Um exemplo disso é Lavinnya Melo, mulher trans e Yalorixá do Ilê Asé Cobarejidão, em Aracaju, Sergipe.
Lavinnya é pioneira, sendo reconhecida como a primeira Yalorixá trans de Aracaju. São 15 anos de Candomblé, com 12 anos de feitura de Santo, um dos rituais mais importantes da religião. Foi no seu terceiro ano de obrigação que os primeiros passos da sua transição começaram.
“Foi uma guerra imensa, porque meu pai de santo, que é uma pessoa cis, não entendia. Eu ficava batendo de frente com ele, mas com todo o respeito à hierarquia do Candomblé. Eu queria mostrar a ele o que é ser uma pessoa trans. Hoje eu sou Yalorixá e meu pai tem outra visão, ele procurou aprender”, conta Lavinnya.

Com cinco anos de casa aberta, Lavinnya acolhe muitas pessoas trans e LGBTQIA+ que chegam ao terreiro sem aceitar quem são. Ela, como mãe, faz o seu papel: acolhe, apoia e ensina que Orixá não vê genitália de ninguém. Orixá quer nossa cabeça e nosso coração para que a gente faça boas ações e caminhe com paz, prosperidade, caminhos abertos e estradas largas.
A Yalorixá também reforça que a transgeneridade, assim como a homossexualidade, sempre existiu — e está presente nas histórias dos Orixás, que viveram na Terra. Ela lembra que Pomba-giras e Exus já se apresentavam dessa forma desde o tempo da escravidão, mantendo viva a ancestralidade desses corpos.
Se o povo preto é ancestral, o povo trans também é!
Ayô Tupinambá
Esse pensamento também é compartilhado por Ayô Tupinambá, cantora e filha do Terreiro de Umbanda Urubatão (T.E.U) da Guia, na Zona Sul de São Paulo. No seu terreiro, cerca de 90% das pessoas são LGBTQIA+.
Ayô nasceu e cresceu nos cultos evangélicos, mas saiu da igreja devido às violências que sofreu ao iniciar sua transição. Na época, ainda atuava como missionária em Natal, Fortaleza. Ela conta que foi no terreiro em que é filha que encontrou acolhimento, potência e um espaço onde poderia viver sua religiosidade e ancestralidade como um corpo travesti.

“Quando Iansã baixa no meu corpo, ela respeita a minha identidade de gênero. Se não respeitasse, ela nem baixava, né? Saber que Orixá baixa no meu corpo travesti mostra como o terreiro é um espaço de fortalecimento da minha própria existência”, conta Ayô, filha de Oyá.
Ela também lembra que a tradição não pode ser usada como justificativa para exclusão e cita o caso recente do Afoxé Filhos de Gandhy, que impediu a participação de homens trans e pessoas transmasculinas no cortejo de Carnaval.
“A tradição está aí para ser mudada, né? Antes, só mulheres cisgêneras incorporavam. Depois, os homens começaram a incorporar, mas apenas os Orixás considerados masculinos. Com o tempo, eles também começaram a ser feitos em Orixás femininos. Minha mãe de santo, Gui Watanabe, sempre me ensinou uma coisa que aprendeu com a sua Maria Mulambo: “A felicidade é inegociável.”
Olodumarê ama seus filhos como iguais
O preconceito e o ódio não fazem parte da fé. No Candomblé e na Umbanda, quem propaga transfobia e racismo desrespeita o Orí e a individualidade dos filhos, filhas e filhes. Iyálòrísá Verah D’Osun, matriarca do Ilêàsébá, em Santo André (SP), acredita que as religiões de matriz africana não podem afastar pessoas trans.
“O Candomblé é uma religião preta. A gente sempre ficou à margem, carregados de medos e preconceitos. No século XXI, não cabe mais essa separação, essa cabeça pequena. Eu sou uma mulher preta, sei o que é preconceito e me coloco no lugar dos meus filhos. Racismo, transfobia, homofobia, gordofobia… tudo isso dói.”

Em 2017, Verah D’Osun, que é uma mulher cisgênera, consagrou a primeira pessoa trans em seu Ilê. Passados mais de dez anos, ela não apenas segue acolhendo mais filhos, filhas e filhes trans, como também os tem em importantes funções, como é o caso de sua Ekedji, uma mulher trans, escolhida por Orixá, para cuidar e zelar do sagrado.
Para a Iyá, Olodumarê, o grande criador e divindade suprema do Yorubá, ama seus filhos como iguais, cada um com sua individualidade. Ela também explica que muito se fala sobre Orí, de não ofender o Orí, que o Orí é um Orixá próprio, um Exú e um mundo próprio da pessoa, mas muitos ainda querem colocar os seus preconceitos e receios acima disso.
“Quem sou eu para falar que um homem trans tem que usar roupa feminina, se o Orixá dele aceita como ele é? Podemos ser filhos e filhas de reis e rainhas, mas não somos Orixás. O conselho que eu dou para os sacerdotes e sacerdotisas é: olhe com amor, porque o amor quebra muitas barreiras. Essa é a missão dos povos tradicionais de terreiro, quebrar o preconceito e o medo”.
Assim como o Ilê Asé Cobarejidãn, Ilêàsébá e o Terreiro de Umbanda Urubatão da Guia, há muitas outras casas espalhadas pelo país que acolhem e respeitam as vidas trans, como mostra o projeto Cadastro Nacional de Terreiros Trans-Inclusivos (CanNTIn). A iniciativa busca atuar como uma ferramenta que permite às pessoas trans identificarem terreiros comprometidos com o respeito à sua identidade de gênero, enquanto destaca lideranças religiosas e ações inclusivas em todo o Brasil.
O projeto, que nasceu a partir da pesquisa de mestrado ÌGBÀMÍRÀN ÀIYÉ: O Ethos Afro- Brasileiro e a Transgeneridade na Religião dos Orixás, de autoria do Babalorixá Alan de Ogun (Ogundeje), reflete o compromisso dessas tradições religiosas com a justiça social e a valorização da diversidade.
Glossário
Ekedji: Pessoa responsável por cuidar e zelar dos Orixás e do terreiro, sem incorporar.
Orixá: Divindades cultuadas nas religiões de matriz africana, ligadas à natureza e aos elementos da vida.
Orí: A energia espiritual e destino individual de cada pessoa, considerado um Orixá próprio.
Iorubá: Povo e língua de origem africana, de onde vêm muitas tradições do Candomblé.
Ilê: Casa de culto aos Orixás, também chamada de terreiro.
Axé: Força espiritual que rege tudo no universo, transmitida por meio de rituais e vivências.
Maria Mulambo: É uma Pomba-Gira, importante entidade espiritual feminina afro-brasileira
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