Geni é travesti. Foi com essa narrativa que o filme “Geni e o Zepelim” foi aprovado e captou recursos públicos, como consta nos registros da Agência Nacional do Cinema (ANCINE). Mas, ao chegar na fase de realização, a produção decidiu substituir a personagem por uma mulher cisgênero, escalando também uma atriz cis para o papel principal. A decisão gerou indignação na comunidade trans e em aliados do audiovisual, que denunciaram o apagamento em curso.
O longa é uma adaptação cinematográfica da famosa canção “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque, de 1978, que compôs o musical “Ópera do Malandro” e deu origem a diversas obras nos anos seguintes. A música chegou a virar peça e um filme em 1986, que deixa claro que o motivo da hostilidade contra Geni era por sua identidade de gênero.
Joga pedra na Geni! Joga bosta na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um!
Maldita Geni!
Chico Buarque sabia disso, a mídia sabe disso e Anna Muylaert, diretora e roteirista do longa, também sabia disso. Ainda assim, em suas redes, após a comunidade trans e pessoas cis-aliadas de grande importância no cenário cinematográfico e cultural apontarem por transfobia, Muylaert se pronunciou afirmando que a canção de Chico abria margem para “várias leituras” sobre quem seria Geni.

“Entenda a polêmica do filme Geni e o Zepelim”, “A polêmica em torno de personagem trans do filme ‘Geni e o Zepelim’”, “Polêmica: o que motivou troca de atriz cis por trans?” foram as mensagens propagadas nas matérias que repercutiram o filme. Nessas e em tantas outras notícias, uma palavra chamou a nossa atenção: ‘polêmica’. Seria essa a melhor forma de chamarmos os últimos acontecimentos envolvendo a personagem Geni?
Da denúncia à mobilização
E se ao invés de polêmica, falássemos em apagamento, apropriação ou epistemicídio, um apagamento da memória? Essa é uma das reivindicações da Associação de Profissionais Trans do Audiovisual (APTA), que teve papel fundamental no diálogo com a produção do filme em absorver as críticas da comunidade trans de modo a evitar o transfake que estava em curso — sem receber qualquer contrapartida financeira por isso.
Alice Muniz, atual presidenta da APTA, nos contou que já presenciou diversos corpos interpretando Geni. Mas, em nenhum deles, Geni estava sendo representada nos palcos por uma atriz travesti. Ela nos lembra do poder da representatividade: “O transfake mina toda uma força das travestis brasileiras e da população trans brasileira marginalizada de poder se reconhecer e se empoderar perante uma tela de cinema”.

Foto:Arquivo pessoal de Alice Muniz
Muniz comenta que mudanças ao longo da execução de projetos audiovisuais são comuns e que isso sempre foi feito no cinema, ainda que nem sempre de forma justa. Seja por uma justificativa criativa, artística ou social, como em aumentar a repercussão e impactar mais pessoas. Lembremos do caso de Telma Lipp, que foi convidada a participar do filme Carandiru para interpretar Lady Di, chegando a participar ao longo de meses dos ensaios, sendo trocada pelo ator Rodrigo Santoro, um homem cis interpretando uma travesti, por movitos de “marketing”.
O mesmo aconteceria com o filme de Muylaert, em que Geni deixaria de ser interpretada por uma travesti para ser uma personagem cisgênero. A diferença é que, dessa vez, a justificativa não foi suficiente. “Fazer isso hoje em dia com as pessoas trans organizadas dentro do audiovisual, a gente vai se mobilizar para pedir uma reivindicação justa. A gente vai falar, porque se em silêncio a gente apanha, pelo menos a gente vai apanhar falando”, comenta Alice.
Foi por conta dessa mobilização da comunidade que o rumo do filme voltou a sua história original. Geni será interpretada por uma travesti: a atriz Ayla Gabriela estreia como protagonista em seu primeiro longa.
O uso indevido da pauta trans
A mobilização expôs outra camada do problema: o uso da pauta trans como estratégia para captação de recursos públicos, sem compromisso real com a representatividade.
Giu Vatiero, especialista em Direitos Autorais e Culturais, nos explicou que no Brasil projetos audiovisuais que recebem apoio público, como os fomentados pela ANCINE, são regidos por um instrumento jurídico chamado Termo de Execução Cultural. Esse termo é mais do que um simples contrato administrativo: ele vincula o proponente à execução fiel da proposta aprovada, a qual, por sua vez, é avaliada com base em critérios técnicos, conceituais e cada vez mais sociais.
“A presença de uma travesti em destaque em um longa-metragem tem um peso político, simbólico e social inegável. Essa presença foi utilizada como critério de mérito para a aprovação do projeto e a posterior substituição dessa pessoa por uma atriz cisgênera, sem autorização prévia da agência, pode configurar descumprimento do Termo de Execução Cultural. Essa alteração atinge não só a concepção artística, mas o próprio compromisso que justificou o uso de recursos públicos”, afirma Vatiero.
Isso significa que, ainda que mudanças ao longo do percurso do projeto sejam comuns, uma mudança como essa na identidade de gênero da personagem protagonista do filme abre um precedente alarmante no uso de recursos públicos aprovados com o uso da pauta trans.
Escuta, ação e reparação
Para reparar os danos e garantir maior representatividade trans no cinema, a APTA divulgou uma carta com reivindicações direcionadas à produção de Geni e o Zepelim. As demandas incluem a escolha de uma nova protagonista trans, revisão do roteiro por pelo menos três profissionais trans, contratação de no mínimo 10% de equipe técnica trans e reconhecimento público da falha, com compromissos claros em relação à saúde mental, segurança e bem-estar das pessoas trans envolvidas no projeto.
Ao assegurar que Geni será interpretada por uma atriz travesti, o filme dá um passo importante. “Essas ações podem marcar o início de um processo de reparação histórica que o audiovisual brasileiro precisa e deve assumir. Não se faz cinema justo sobre travestis sem travestis. É tempo de escuta, ação e reparação”, diz a carta.