Para além da pauta sobre a contratação de atores e atrizes trans e travestis no campo da interpretação, que ganha destaque sempre que surge uma denúncia sobre o “transfake” — termo usado para se referir a filmes e séries que escalam atores e atrizes cisgêneros para interpretar pessoas trans — é necessário ampliar esse debate para a composição das equipes e para o cerne da criação, o que envolve as políticas culturais estratégicas de captação de recursos por meio de editais as práticas de negociação e a consciência do inegociável. Somente dessa maneira é que conseguiremos produzir filmes que expandem os universos desgastados das narrativas trans no cinema.
Desenvolvendo uma pesquisa de doutorado com foco nas cinematografias trans, Noá Bonoba* mapeou sete filmes dirigidos por pessoas trans. O mapeamento parte de um debate sobre a redistribuição de acessos e das políticas afirmativas como estratégia de reparação histórica pelas ausências de pessoas trans na cinematografia brasileira e no mercado de trabalho audiovisual.
Realizar um mapeamento da nossa cinematografia é, na verdade, construir história e registro, visibilizando e respondendo aos apagamentos das nossas produções diante de diversos fatores que deslegitimam suas existências. O elemento discursivo que orientou esse mapeamento foi a tentativa de agir na reestruturação dos critérios do que é considerado um filme. Em diálogos com diversos realizadores trans, constatamos que a forma como o mercado audiovisual se organiza tende a nos excluir.
As oportunidades para pessoas trans e travestis sempre foram escassas, e a própria inserção da comunidade T no mercado de trabalho é atravessada por preconceitos e barreiras, que vão desde o âmbito familiar até o ambiente escolar, refletindo em sequelas ao longo da vida adulta. Essa relação de rejeição e negação de pessoas trans e travestis nos espaços de trabalho resulta em oportunidades limitadas de formação e acesso ao conhecimento hegemônico, levando a comunidade T ao desemprego e à precarização de suas vidas.
Entre os desafios enfrentados pela produção audiovisual trans, destacam-se:
- Dificuldade de acesso a recursos para a realização de filmes.
- Dificuldade de seleção em festivais.
Cientes desses obstáculos, o mapeamento foi realizado com critérios que subvertem as lógicas do mercado, que normalmente ditam os parâmetros qualitativos de uma obra cinematográfica. Nesse mapeamento, não importa se o filme foi selecionado em festivais, se ganhou prêmios ou se atende a critérios técnicos, como qualidade de imagem ou equipamentos utilizados. Esses fatores, que frequentemente guiam as seleções nos grandes festivais e o sistema de distribuição audiovisual no Brasil, não foram centrais nesse processo. O único critério relevante foi o dado da estreia do filme, independentemente do evento ou do local escolhido para sua realização.
7 longas dirigidos por pessoas trans:
- As mães do Derick, de Cássio Kelm (PR) (2020)
- Intransitivo, de Gabz 404, Gustavo Deon, Lau Graef e Luka Machado (RS) (2021)
- Sessão Bruta, de As Talavistas e ela.ltda (MG) (2022)
- Sob a terra do encoberto, de Xan Marçal e Id Libra (PA) (2022)
- Capim-navalha, de Michel Queiroz (GO) (2023)
- Sofia foi, de Pedro Geraldo (SP) (2023)
- Salão de Baile: This is Ballroom, de Juru e Vitã (RJ) (2024)
*Noá Bonoba é atriz, roteirista, realizadora, preparadora de elenco, encenadora, dramaturga, pesquisadora doutoranda no PPGCOM- UFC, onde pesquisa as cinematografias trans e as possibilidades de reestruturação do audiovisual brasileiro através dos eixos: formação, realização, redistribuição de acessos e políticas afirmativas. Atualmente é Diretora de Descentralização e Pesquisa da Associação de Profissionais Trans do Audiovisual (APTA). É também mestra em Artes pelo PPGARTES-UFC e Licenciada em Teatro pelo IFCE.
Crédito da foto de capa
Salão de baile: Bruna Trindade
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