Autor: Ma Lerin

  • Além da jornada 6×1: o mercado de trabalho precarizado e as vivências trans

    Além da jornada 6×1: o mercado de trabalho precarizado e as vivências trans

    Nas últimas semanas, a luta pelo fim da jornada 6×1 ganhou força nas redes sociais. A proposta, impulsionada pelo movimento “Vida Além do Trabalho” (VAT), liderado por Rick Azevedo, vereador do PSOL no Rio de Janeiro, foi levada à deputada federal Erika Hilton (PSOL), que apresentou a iniciativa como uma emenda parlamentar para reduzir a carga horária semanal dos trabalhadores para 36 horas.

    O protagonismo de Erika Hilton tem reforçado o papel das pessoas trans e travestis na política, evidenciando sua contribuição nas lutas por melhores condições de trabalho e direitos. “Erika liderar uma proposta que erradica a escala 6×1 é fundamental para a comunidade trans. Ela traz uma agenda de direitos trabalhistas e promove uma nova consciência de classe, colocando nossa comunidade no centro do debate”, afirma Caia Maria, pesquisadora e conselheira do Centro de Pesquisa Transfeminista.

    Para a pesquisadora, a luta pelo fim da escala 6×1 é mais do que uma reivindicação trabalhista: é um passo essencial para combater a exclusão estrutural e construir um mercado de trabalho mais justo e inclusivo para a comunidade trans e travesti.

    O texto inicial da PEC conta com 230 assinaturas e aguarda ser protocolado no próximo ano. Após isso, será analisado na fase de admissibilidade, etapa que verifica se a proposta não fere cláusulas pétreas da Constituição. Sendo aprovada, segue para uma Comissão Especial, onde pode ser revisada antes de ser votada no plenário da Câmara. Para aprovação, são necessários votos favoráveis de 3/5 dos deputados (308 votos) em dois turnos. Com a aprovação na Câmara, o texto segue para o Senado e, se aprovado sem alterações, é promulgado como emenda constitucional.

    O que é a Escala 6×1?

    A Escala 6×1, vigente há 81 anos no Brasil, prevê seis dias consecutivos de trabalho com um dia de descanso, totalizando, em média, 44 horas semanais. Por exemplo, um trabalhador pode ter uma folga por semana aos domingos ou em outro dia, dependendo do acordo com a empresa.

    Os desafios de pessoas trans no mercado de trabalho

    No Brasil, uma das maiores causas de afastamento por auxílio-doença, segundo dados da Previdência Social, está relacionada a transtornos mentais, sendo depressão e ansiedade os mais comuns. Muitas vezes, essas condições estão ligadas a modelos de trabalho precarizados, com vínculos frágeis, carga horária excessiva, no caso de pessoas trans e travestis, o preconceito como agravante.

    “Sinto que estou em uma escala 7×0, sem descanso real e sempre cansado. Em São Paulo, tudo é corrido: trabalhamos para pagar as contas, mas falta energia para lazer”, relata Kairos Castro, pessoa não binária trans masculina, escritor, poeta e coordenador cultural do IBRAT-SP.

    Kairos trabalha atualmente em uma biblioteca, mas já enfrentou discriminação devido à sua identidade de gênero em empregos anteriores, que não respeitavam seus pronomes ou ofereciam um ambiente inclusivo. Esse cenário agravou o desgaste físico e emocional. “Antes eu trabalhava em escritório, onde me assumi trans no ambiente de trabalho e, por anos, não fui respeitado. Passava cinco horas ou mais dentro do ônibus, somando ida e volta, mas tinha finais de semana livres, o que permitia algum lazer. Hoje, meu único dia de folga é usado para resolver questões pessoais ou realizar outros trabalhos. Isso torna o lazer quase impossível”, acrescenta.

    Outro fator é a racialidade: o peso de ser uma pessoa negra em ambientes pouco racializados, em que pesquisas mostram que pessoas negras são maioria na escala 6×1 e recebem os menores salários. Elu destaca que ser a única pessoa trans em alguns espaços também gera um clima de solidão e impotência.

    Sem tempo para lazer ou para outras tarefas do dia a dia, Kairos ainda recorre a outros trabalhos, como freelancer em eventos e trabalhos artísticos, para complementar a renda no final do mês. Isso evidencia que, mesmo com a “estabilidade” da carteira assinada, para sobreviver, elu ainda trabalha nos únicos dias de descanso.

    De acordo com dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), apenas 4% das pessoas trans têm carteira assinada, enquanto 90% recorrem à prostituição devido à exclusão do mercado formal de trabalho.

    A pesquisadora Caia Maria também destaca os desafios impostos pela reforma trabalhista de 2017, sancionada pelo ex-presidente Michel Temer, que precarizou sindicatos e ampliou a terceirização. “Como falar de aposentadoria, se não há perspectiva de envelhecimento? Como discutir sindicalização, se o trabalho sexual sequer é reconhecido? E como lutar por direitos trabalhistas, se a maioria nunca teve carteira assinada?”, questiona.

    O que diz a proposta de diminuição de carga de trabalho? 

    A proposta busca alterar o texto do inciso XII do artigo 7 da Constituição federal.

    Artigo atual

    O art. 7º , XIII , da CF/88 , estabelece que a duração normal do trabalho não poderá ser superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais. Logo, devem ser consideradas como horas extras aquelas que excederem a 8ª hora diária e não apenas as que ultrapassarem a 44ª hora semanal.

    Nova proposta 

    Art.7º, inciso XIII: “duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e trinta e seis horas semanais, com jornada de trabalho de quatro dias por semana, facultada a compensação de horários e a redução de jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho”.

  • Acué: explicando economia para pessoas trans

    Acué: explicando economia para pessoas trans

    A relação entre economia e pessoas trans vai além das questões tradicionais de acesso ao mercado de trabalho, renda e qualidade de vida. Cercada pela exclusão social, a população trans enfrenta desafios específicos que impactam diretamente sua estabilidade financeira e segurança econômica.

    Termos como Selic, IPCA e INPC, que podem parecer distantes do cotidiano, têm impactos profundos nas nossas vidas, amplificando ou não a desigualdades e criando barreiras para estabilidade financeira. Por isso, a Transmídia traz até você o “bê-a-bá” do acué, que simplifica termos do “economiques” e como a mesma faz parte do dia a dia de pessoas trans, travestis e não-binárias.

    Traduzindo conceitos que fazem parte do nosso dia a dia. 

    Quando falamos sobre o crescimento econômico do país, a Selic — a taxa básica de juros — tem um papel central. Quando essa taxa está alta, aumenta a inflação, o que reduz o poder de compra, ou seja, é necessário mais dinheiro para adquirir os mesmos produtos.

    Um exemplo, se uma cesta básica custava R$100 no ano passado e hoje custa R$120, isso é um reflexo da inflação. Para pessoas trans que já enfrentam exclusão do mercado de trabalho formal, o aumento da Selic pode significar maior endividamento e dificuldades para manter a estabilidade financeira, pois com o aumento da Selic, também há um aumento do crédito, tornando o acesso a empréstimos ou financiamentos habitacionais mais difícil. 

    Na prática, isso significa que se antes era possível pegar um empréstimo e pagar R$50 de juros, agora pode ser que tenha que pagar R$70 ou R$100 pelos mesmos R$1.000 emprestados pelos bancos. 

    • Uma pesquisa realizada pelo Vagas.com, empresa de recrutamento e seleção em janeiro deste ano mostrou que pessoas trans recebem, em média, 17% a menos que pessoas cisgênero (26%). Tais números mostram a desvalorização e marginalização do poder de compra. 

    “A inflação é uma coisa  macroeconômica, mas também tem uma reflexão microeconômica que está muito perto da vida da gente, como tratamento hormonal e o preço dos hormônios” Nina Pedrosa.

    Nina Pedrosa, é engenheira e economista, especialista em bens intangíveis e Conselheira da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), e afirma que o aumento da inflação sobre esse produtos fazem com que muitas pessoas trans busquem medicações mais baratas e perigosas, como é o exemplo da Perlutan, para Mulheres Trans e Travestis. “E não só nos hormônios, como também no acesso à saúde, à cirurgias e outros aspectos”, completa Pedrosa.

    Além da Selic, temos o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) — índice que mede a inflação no Brasil. E o chamado Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), que mede como a inflação impacta a faixa de renda das famílias que ganham de 01 a 05 salários mínimos. A comunidade trans, em grande parte situada na base da pirâmide econômica, sente esses aumentos de forma desproporcional, principalmente em itens básicos como transporte e alimentação. Quando os preços sobem, o custo de vida aumenta.

    “No final das contas, isso amplia esse cenário de desigualdade e esses grupos (de pessoas trans), acabam não conseguindo pensar em planejamento financeiro. Como comprar ou guardar o dinheiro para depois investir”, comenta a coordenadora de projetos do Instituto Febraban de Educação, professora universitária e CEO da Transformasie – Inteligência Financeira Izabel Rocha.

    Educação financeira para pessoas trans

    Na visão do economista de formação, especialista em Renda Fixa dá Me Poupe! e criador da Bixa Rica, Gean Duarte, a educação financeira auxilia na construção de outros cenários importantes que valorizem pessoas LGBTQIAPN+, em especial a população trans.

    “É fundamental que existam iniciativas específicas para esse público e também políticas voltadas especificamente para esse cenário. É aí que entra a educação financeira para ensinar as pessoas a gerirem os seus recursos. Além do investimento, o empreendedorismo para essas pessoas seria interessante. Se existem várias empresas grandes, a distribuição de renda é menor, mas a gente tem vários pequenos empreendedores, temos uma distribuição de renda maior”, afirma Duarte.

    Dicas para Iniciar a Educação Financeira

    Aqui estão algumas dicas práticas e iniciais para ajudar pessoas trans a ganharem mais independência econômica:

    1. Mapeie os gastos e orçamento pessoal: Anote todas as entradas e saídas de dinheiro. Isso ajuda a visualizar os gastos, identificar excessos e organizar as finanças em categorias como moradia, alimentação, saúde e lazer.
    2. Crie uma reserva de emergência: Uma reserva de emergência é crucial. O ideal é guardar uma parte da renda, mesmo que seja uma quantia pequena por mês, até atingir um valor adequado, que cubra as despesas básicas. 
    1. Evite dívidas caras: Cartões de crédito e empréstimos com juros altos podem ser armadilhas para quem está começando a organizar suas finanças. Se precisar de crédito, busque opções com taxas mais baixas e evite parcelamentos que comprometem mais de 20% da renda.
    2. Estabeleça metas: Defina metas de curto, médio e longo prazo, como juntar dinheiro para um curso, um tratamento médico ou um fundo de aposentadoria. Ao ter metas claras, fica mais fácil se organizar para alcançá-las, economizando e fazendo escolhas financeiras mais conscientes.
    3. Busque conhecimento sobre finanças: Existem cursos gratuitos online sobre educação financeira oferecidos por instituições como a B3 e a Fundação Bradesco. Aprender mais sobre poupança, investimentos e juros pode abrir novas possibilidades para a gestão financeira.

    Essas dicas podem ajudar pessoas trans a começarem a se educar financeiramente, empoderando-se para tomar melhores decisões e buscando mais segurança e autonomia no dia a dia.

    Contexto

    • Acué vem do dialeto Pajubá, comumente usado pela comunidade LGBT e significa dinheiro. 
    • Perlutan é um anticoncepcional injetável que contém hormônios e é usado para prevenir a gravidez. Também pode ser indicado para tratar problemas hormonais ou irregularidades menstruais. Usado por mulheres trans e travestis no processo de hormonização, muitas vezes sem recomendação médica.

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