Autor: Liel Marin

  • “Mudei de carreira para transicionar a saúde”

    “Mudei de carreira para transicionar a saúde”

    Estou sentado em uma sala de espera. Minhas mãos suam, meu coração dispara, e meu pé bate insistentemente no chão. Chamam um número, dois, três, quatro… Lá no fundo do corredor, ouço um grito: ‘Senhora M… Levanto apressado, ainda em jejum, e digo: ‘Eu já mudei os documentos, o nome certo está aqui, olha!’

    As crises de ansiedade me acompanham, seja nas salas de espera dos laboratórios, nos consultórios, na fila da UPA, no postinho ou em qualquer estabelecimento de saúde. Existe algo que conecta todas as pessoas trans, e não é aquela velha narrativa sobre odiar o próprio corpo. É uma experiência compartilhada que todes nós já vivemos ou, infelizmente, viveremos: o desconforto, o receio e o medo de precisar ir ao médico.

    Foi essa realidade que, após oito anos como jornalista, me levou a prestar o ENEM novamente. Me chamo Liel Marin e em outubro deste ano comecei minha jornada como estudante de medicina na Universidade Federal do Oeste da Bahia, movido pelo sonho de proporcionar, no futuro, mais saúde e acesso para a população trans.

    Afinal, quando falamos de saúde para a população trans, do que estamos falando?

    A OMS define saúde como um “estado dinâmico de bem-estar completo”, mas, para a população trans brasileira, esse ideal parece cada vez mais inatingível diante dos inúmeros desafios cotidianos. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), somente 4% das pessoas trans e travestis estão inseridas no mercado de trabalho formal, o que compromete o acesso a uma renda fixa e, consequentemente, a condições básicas de vida.

    “Quando a gente pensa em saúde, a gente pensa em medicina, mas ela vai para muito além, para ter saúde é preciso ter trabalho, ter renda, ter acesso. É preciso pensar nas experiências de saúde da transgeneridade a partir desses marcadores”, pontua Pisci Bruja, antropóloga e especialista em saúde coletiva HIV/AIDS.

    Essa exclusão social e econômica está diretamente ligada à ausência de políticas públicas adequadas, fator apontado pelo Observatório Anderson Herzer como determinante no aumento dos casos de suicídio entre transmasculines. Em 2023, o relatório “Mortes e Violências Contra as Transmasculinidades” revelou que 71,9% dos respondentes relataram ter pensado e/ou tentado cometer suicídio, evidenciando a gravidade da situação. 

    Além disso, mesmo quando conseguimos acessar os estabelecimentos de saúde, as pessoas trans enfrentam inúmeras barreiras.

    “Existe uma relação muito radical quando eles leem meu prontuário, olham o meu nome e veem aquela pessoa que está na frente deles. Eles não sabem bem como lidar com isso, porque já existe todo um número de qualidades que eles preenchem sem a minha permissão, sem a minha vontade em relação a mim. Acho que nossa disputa na área da saúde é uma disputa de ocupação de existências”, relata Dana Eleanor Galba Fitipaldi, mestranda em saúde pública e educadora.

    Embora a luta dos movimentos sociais tenha garantido avanços, como o Processo Transexualizador no SUS em 2008, ainda há um longo caminho a percorrer. O SUS, por exemplo, começou recentemente a permitir que pessoas trans retificadas realizem exames compatíveis com suas necessidades. Porém, a falta de profissionais capacitados para lidar com as especificidades dessa população faz com que o direito à saúde muitas vezes permaneça no papel, como descreve Pisci Bruja:

    “Pensar num cuidado integral é pensar que existem múltiplas necessidades, que um corpo trans não é um corpo que vai necessariamente precisar somente de acesso ao hormônio ou de prep, ou de tratamento para HIV. A gente é um corpo, tem dor de cabeça, tem dor de barriga, que pode desenvolver câncer, inclusive.”

    Nesse contexto, o médico psiquiatra Dr. Camilo Miranda, durante o lançamento da Cartilha da Saúde da População Trans no DENEM, destacou a relevância dos centros de referência para a população trans, como o Janaína Lima, em São Paulo. Porém, ele foi além, ao reforçar a necessidade de que todos os estabelecimentos de saúde sejam espaços capazes de atender, respeitar e acolher pessoas trans.

    Um futuro verdadeiramente comprometido com a saúde dessa população será aquele em que todos os profissionais de saúde estejam preparados para lidar com a diversidade e respeitar a existência das pessoas trans, garantindo cuidados integrais e humanizados.

    Caminhos iniciais para promover essa transformação

    “Uma das coisas fundamentais para nós começarmos a mudança é pensar na linguagem. Acho que nossa disputa na área da saúde é uma disputa de ocupação de existências possíveis. É sobre produção de vida e a cisgeneridade geralmente trabalha só com produção de morte, especialmente da nossa, e especialmente da população preta”, relata  Fittipaldi.

    A linguagem, portanto, é uma ferramenta poderosa para criar um mundo onde corporalidades e vivências trans sejam plenamente reconhecidas. Quando falamos em pessoas que gestam, evidenciamos que não apenas mulheres cisgêneras têm essa capacidade. Ao evidenciar a existência da cisgeneridade, inserimos no imaginário a presença de corpos masculinos com vulva e corpos femininos com pênis. E, ao abordar as não-binariedades, deslocamos o pensamento médico fixado exclusivamente no genital do paciente.

    Da mesma forma, respeitar os pronomes de um paciente não é um simples capricho, mas uma expressão de cuidado e comprometimento com a saúde daquela pessoa. O pronome não é apenas uma palavra: é o reconhecimento de sua identidade como indivíduo e, consequentemente, uma garantia de que seu direito à saúde será respeitado.

    “O cenário ideal é que a gente construa um processo amplo e contínuo de capacitação para que a gente faça uma transformação cultural. Nós precisamos transicionar a saúde. Se a gente não conseguir fazer isso nós não vamos conseguir avançar”, finaliza Pisci Bruja.

    Contexto 

    Processo Transexualizador: é um conjunto de procedimentos e assistências prestadas à comunidade trans no Brasil. 

  • 19 universidades públicas já adotam cotas trans

    19 universidades públicas já adotam cotas trans

    No Brasil, 19 instituições públicas já adotam cotas para pessoas trans na graduação, com seis implementando a medida em 2023 e cinco em 2024. As políticas de cotas começaram em 2012 como ações afirmativas para reservar metade das vagas em universidades federais para estudantes de escolas públicas, EJA, pessoas pretas, pardas, indígenas e quilombolas, como tentativa de promover a equidade social no ensino superior.

    A Bahia se destaca com 60% das universidades públicas adotando políticas afirmativas na graduação, o estado foi o primeiro a implementar cotas para pessoas trans no ensino superior e, ainda hoje, é o que mais tem avanços no país.

    Início das cotas trans no Brasil

    A Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) foi a primeira a adotar as cotas trans no Brasil, em 2018. Fundada em 2013, as questões trans chegaram na UFSB através do Fórum Social que ocorreu em 2015. A universidade recebeu a visita de um homem trans da UFBA e a partir do encontro foi elaborado um documento chamado Carta de Itabuna, que apontava alguns furos na resolução do nome social e uma série de outras iniciativas importantes. 

    Segundo a atual reitora, Joana Guimarães, o que permitiu a medida ser adotada foi a falta de tradição. “Isso nos permitiu inovar em algumas questões porque não havia uma universidade com tradição, uma universidade consolidada, isso refletiu na política de cotas inéditas”, afirma Joana.

    Para garantir o sucesso das ações afirmativas destinadas a pessoas trans, a universidade criou algumas ações em parceria com a professora Isabella Silva Santos, o primeiro passo foi a criação de um curso preparatório para o Enem, o TRANS+, que durou dois anos e foi descontinuado por questões orçamentárias.

    De acordo com o pró-reitor Sandro Ferreira, o cursinho foi importante do ponto de vista simbólico, porém nenhum aluno que participou entrou na universidade. Em sua avaliação, o programa falhou no acompanhamento desses estudantes, evidenciando os múltiplos desafios de inserção das pessoas trans no ambiente universitário. Além dessa iniciativa, logo após a implementação das cotas, a UFSB organizou um curso de capacitação para docentes e técnicos, a fim de preparar o ambiente acadêmico para receber alunes trans. 

    Para o aluno de Direito da Universidade Estadual do sudoeste da Bahia,  Adriel Souza, as cotas específicas para pessoas trans são importantes para que elas não desistam da vida acadêmica. “No dia que fiz a matrícula, vi duas meninas e um rapaz trans, e isso me deu segurança. Saber que eu não estava sozinho, que outras pessoas trans estavam passando pela mesma situação que eu, correndo atrás do sonho de mudar suas vidas, foi muito importante”, relatou o estudante. 

    Permanência

    A Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) também criou, em 2021, o auxílio permanência para estudantes trans, se tornando uma das poucas universidades federais do Brasil com uma política de ajuda financeira destinada exclusivamente a esse público — no momento, 11 estudantes em vulnerabilidade social são contemplados com o valor de R$400 reais mensais.

    Na nossa visão, o auxílio aumentou o número de alunos que passaram a se reconhecer e se declarar, facilitou os processos de transição de gênero e contribuiu para a chegada de novos alunos e sucesso de outros. Muitos estudantes trans escolhem a UFSB por saber que nós oferecemos o auxílio afirma o pró-reitor da instituição, Sandro Ferreira. 

    Já a Universidade Federal da Bahia (UFBA) possui políticas de permanência, como o “auxílio acolhimento”, que garante R$700 reais mensais para estudantes trans contemplados e é essencial para a continuidade do ensino dessas pessoas. A Universidade do Estado da Bahia (UNEB) oferece algumas políticas de permanência, como residência universitária e modalidades de auxílio financeiro.

    No entanto, garantir que esses estudantes permaneçam e concluam seus cursos continua sendo um dos maiores obstáculos. Falta de apoio psicológico, auxílio financeiro e transfobia institucional são apontadas pelos estudantes como as grandes barreiras na conquista do diploma. 

    Existe também a barreira do acesso à informação como narra a estudante de pedagogia Yngrid Sofia Barbosa: “as cotas ainda são pouco divulgadas”. Ela comenta que só soube da ação afirmativa dois anos depois da mesma entrar em vigor, o que, junto com a burocracia, afasta os novos discentes.

    Em 2019,  Jheef Manoel, estudante na Universidade do Estado da Bahia  (UNEB), se reuniu com outros universitários para formar o coletivo Unetrans+, para discutir sobre o nome social, que não era respeitado. Mesmo após a retificação do nome, havia problemas no sistema. “Durante a pandemia, alguns professores viam o nome morto da pessoa e faziam a chamada com esse nome, mesmo sendo informados de que estava errado. Esse problema persistiu por muito tempo até ser resolvido”, relata Jheef. 

    Situações de desrespeito ao nome também afetaram a estudante Fayola, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), de maneiras que foram além do desgaste psicológico e emocional. Quando seu nome, já alterado, passou a ser substituído pelo nome morto no sistema, Fayola perdeu o acesso ao restaurante universitário e ao bilhete de transporte. Essa divergência no nome e a exposição constante do nome anterior persistiram por anos, expondo Fayola a diversas situações constrangedoras e exaustivas.

    Para os estudantes, garantir a permanência de pessoas trans passa pelo respeito ao nome, a garantia de auxílio financeiro e um programa de ajuda psicológica contínuo. 

     “Tenho uma preocupação com o suporte psicopedagógico, especialmente nos campi do interior. Muitas pessoas trans que conhecemos entraram na universidade vindas da prostituição e estamos pedindo apoio psicológico para essas pessoas. Como a UNEB cuidará delas? Seria importante discutir mais com os professores sobre melhorias no cuidado com esses corpos que estão entrando na universidade”, conclui Jheff.

    Universidades mais preparadas

    Na Universidade Federal do Sudoeste da Bahia (UESB), além da vaga ofertada, a comunidade acadêmica se preparou para receber esses novos estudantes. Na faculdade, eles oferecem apoio psicológico. Logo na matrícula, apresentam os canais e caminhos para denúncias e os professores também se posicionam contra a descriminação.

    Em 2023, a deputada federal Erika Hilton apresentou o projeto de lei 3109/23 no Congresso Nacional para estabelecer a reserva de 5% das vagas para pessoas trans e travestis em todas as universidades federais e demais instituições federais de ensino superior. Atualmente, o projeto está em análise na Câmara dos Deputados.

    Confira todas as universidades públicas com cotas trans no Brasil!

    Contexto

    • A retificação é o processo pelo qual pessoas travestis e transexuais maiores de 18 anos podem alterar o nome e o marcador de gênero em seu registro civil, de forma simples e sem necessidade de autorização judicial, diretamente em qualquer cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais (RCPN) no Brasil.